Samara, Alma Penada de Adolescente cascavelense. Corrente de Internet Vingativa – Lia Lúcia de Sá Leitão – 31/08/09.

As vezes o escritor passa por situação de dificuldades exemplares, no meu caso, se meus alunos vissem nesse momento a necessidade de escrever e não saber como colocar corretamente as palavras nas suas ordens gramaticais, sentiriam dó do meu constrangimento. Tentarei ser objetiva apesar da imaginação tomar suas cores e seus desastrados caminhos da violência urbana e da insensatez humana.

O mal e o bizarro não são parelhas comuns, mas o toque assombrado do que as notícias más causam no público através do sensacionalismo banaliza toda a sorte de crueldade humana. Ainda bem que a própria sociedade que se apavora com a maldade e alimenta o tenebroso em nosso psique alivia a barra, cedendo às honras dos altares e das benesses as almas inocentemente penadas que voltam para ajudar os necessitados de dinheiro, os endividados, os abandonados, as moças solteiras que necessitam casar, as meninas que carecem de um marido para encobrir a vida fácil, enfim, essas almas chegam através de e-mails, cartas anônimas, papelinhos distribuídos nas ruas, mas quem nunca recebeu uma corrente de oração de uma alma penada do bem? Eu recebo em cada dez mensagens umas três de almas penadas pedindo por clemência.

O mais interessante não é ter medo e sim analisar o pedido da alma, quem psicografou a mensagem deve ter esquecido de algo mais, tipo: rezem, orem, peçam aos Santos, mandem celebrar Missas, Cultos, seja lá qual for o rito de credo da alma do outro mundo, mas o esquecimento torna a situação ainda mais espantosa, mais medrosa, bem mais mal assombrada. Analisemos os fatos, as mensagens chegam, não trazem nenhum pedido de oração, nem cogitam nenhum momento de culto, mas se impõem pelo pavor, sempre no condicional, SE você não enviar essa mensagem para dez, duzentas, mil pessoas, eu volto para pegar no dedão do seu pé, porque dona Zefinha zombou da mensagem e aconteceu-lhe um malefício.

Uma menina desavisada não repassou a corrente porque faltou energia e perdeu a conexão e pagou caro! Pois devia ter corrido numa lan hause que fica a dez quadras de sua casa, assim seria poupada de perder o namorado para Fafá, a filha da vizinha fofoqueira.

Poxa! Isso passa dos limites, os poderes das almas assombrosas ameaçam mesmo depois de defuntas. Custa dar uma trégua e apenas pedir o necessário , rezas, sem obrigatoriamente cobrar uma posição de divulgação de suas vingativas maldades caso não se aceite a temática da mensagem?

Tenho medo sim! Praga virtual deve ser mais poderosa que praga real, a virtual é incutida lá num cantinho do cérebro que durante horas vem um questionamento, será que é verdade? Será que vai acontecer?

O pior que meu medo é transferido para cada acontecimento no restante do dia, basta errar o passo na escada, ou aquele acidente comum de abrir os dedinhos dos pés no ferro da mesinha de costura que foi da avó e hoje decora a sala de estar.

O sinal que mais apavora é a necessidade de ir buscar um copo com água na cozinha e sem ter nem porquê o copo resvala no vazio, a água parece uma cascata e a cozinha em um mícron fica banhada d’água e coberta pelos caquinhos de vidro, na realidade o pior de tudo é ter que limpar toda a bagaceira em cima da hora de uma reunião importante.

Tenho medo sim! Torno-me chata em enviar as correntes para os amigos, mas dividir as torturas netianas também faz parte do mundo moderno.

Vejam o motivo pelo qual precisei escrever esse blá blá blá todo, por causa de um medo sem precedentes.

Cheguei desanimada do trabalho, adentrei no apartamento sem muito papo, larguei a roupa sem maiores cuidados por cima do criado mudo e joguei-me na cama como quem se isola do barulho do mundo, uma sensação de modorra nordestina, sem muita vontade para qualquer coisa.

Os compromissos da segunda feira nunca perdoaram o mau humor, descansei um tempo sem medida no relógio, mas fui obrigada levantar e resolvi almoçar.

A comida parecia deliciosa pelo cheiro bom que veio da cozinha até o quarto me buscar pelo olfato como nos desenhos animados do Pateta.

Sai, sentei-me à mesa, mas a comida não caiu tão bem, belisquei o prato em pequenas porções para não deixar a companheira triste e retirei-me.

Resolvi abrir os e-mails e ficar bem quieta. O costume do pessoal de enviar toda sorte de comunicação sempre me deixou meio sem graça, leio todos. Obrigo-me a ler um por um de uma lista de cem e-mails. Finalmente sou premiada com um único desparate do dia. Devia ter deletado todos.

Abri um a um, todos interessantes, o último da lista, era ele, era a fatídica corrente de Samara. Uma menina que agonizou até a morte entre as raladuras da queda de bicicleta enrroscada nos arames farpados que guardavam um terreno particular em Cascavel e não recebeu socorro do proprietário que tudo assistia sorrindo. MACABRO! A menina morre, o miserável não vai preso, e as pessoas passam a corrente para a alma da menina se desvencilhar dos arames farpados sob pressão de enviar dez e-mails para outras pessoas, a finalidade é divulgar a corrente, mas não pede oração para a alminha penada. Samara não pode ameaçar aquele que se compadece do fato, e não deseja incomodar um amigo com uma corrente que nem é de oração. Samara não deve ser uma alminha vingativa com quem não credita ou com aquele que tem como lema não passar esse tipo de corrente para frente.

A própria Samara devia procurar o homem que não deu socorro, assombrar a polícia que não autuou o canalha que negou ajuda, a equipe dos socorristas que não chegou em tempo hábil, sem contar com quem psicografou a mensagem que não pede orações para a alminha penada de adolescente e assim por diante.

Samara, eu passei pra frente a corrente porque sou mesmo muito frouxa de medo, mas deixo meu repúdio, seja uma alma penada adolescente, mas tenha dó dos vivos! Peça da próxima vez por orações, eu até mando celebrar uma Missa por intenção, mas ameaçando, apesar do meu medo, eu não envio mais uma linha pra ninguém.

Lia Lúcia de Sá Leitão
Enviado por Lia Lúcia de Sá Leitão em 31/08/2009
Reeditado em 02/09/2009
Código do texto: T1785228
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