O intocável.

Á espera da chuva o corpo se prontifica em aceder. Aceitar-se por si próprio em suas limitações diante do ar seco e áspero que parece não incomodá-lo. A palma das mãos que aquietavam os cabelos revoltos pelo vento, que tratavam o rosto porcelana com cuidado amiúde, sente agora o chão molhado como prova de vida. Prova de uma auto existência que jamais surtira o devido efeito para si mesmo.

Mas parecia tão estranha aquela imagem que se refletia. Não era aquele que conhecia. Não era verdade o que via. No entanto, para se ter certeza seria necessário comparar-se com algo verídico. Alguma coisa que poderia se vir mais real do que a sua própria vida.

Mas para onde focaria os olhos se o vermelho que distinguiria o horizonte não mais existe. A opacidade de sua pele tomara para si o que via, abismado. É inevitável não surpreender-se. Já não confiava mais em si mesmo não por decisão intencional. Apenas não se sentia seguro para pôr-se em prova. Muito menos emergir-se para um lugar que nunca estivera. Nunca havia pisado.

Embora o corpo fosse um pedinte feroz sua voz representava um ardor passional de sobrevivência, uma dose complexa de desapego e aversão.

Nada se misturava á sua espécie de ode. Suas vontades materializavam-se no eterno antes de condensar-se em perene. Suas paixões pelo próximo se encerravam em odiar-se sem sentido. A certa altura, isso curiosamente o mantinha altivo. Até tudo se perder ao som da noite. No coaxar de sapos e no ruído insistente de grilos.

Sentado à beira da cama, algumas sensações se misturavam. Ao cobrir-se, o calor. Ao deixar o peito nu, o frio lancinante. A febre. Cada órgão seu a pulsar como anteriormente seus pensamentos faziam. Estava dentro de si, mas não se reconhecia. Estava em seu estômago e sentia regurgitar-se.

Observava ao redor e nada parecia semelhante ao que vira antes de deitar-se. Até perceber que olhava para si. E conceber o desconhecimento em si.

Sim, existia de fato. Com pernas e braços para provar a quem quer que fosse. Com fôlego para bradar e sensibilidade para bocejar quando alguém o fizesse em sua presença. Porém, era desconhecido para si e frustradamente isso não o agradava mais.

Era grotesco o seu distanciar, mesmo intuitivamente não querer. E com algumas peças de roupa em punho, quis livrar-se si. Jogar-se num cesto onde muitas de suas memórias estariam relegadas. E lá permanecer: intocável.