Aquarela
Abre-se uma fresta na cortina: emoldurada pelo quadrilátero da janela florida, emerge uma pequena face assustada; a luminosidade é nebulosa, quase radioativa, fere as retinas e toma perpendicularmente de assalto o inanimado quarto.
Na imagem horizontal, o céu plúmbeo se funde ao oceano. Um único organismo onde torrentes marítimas de ar transitam em suas vias aéreas. Os olhos semicerrados do personagem não se importam com o mar que marcha um marchar quase estático, denso e repetitivo, rumando obediente em direção à terra, e em seu caminho sendo penitenciado pelas gotas da tempestade diagonal e constante que lhe fere a superfície, até arrebentar-se nas negras rochas verticais, quando então restam gotículas a bailar em espirais até serem tragadas pela volúpia do vento.
A face recostada sobre a fina película de vidro que estampa de seu lado externo as bolhas da chuva, sente agora o gelo arder as sardas do nariz, faz-se então notória a cálida e sôfrega respiração a formar figuras concêntricas de névoa oscilando no vidro frio. Como uma criança, aponta, sem poder tocar, embora almeje, para cada uma daquelas bolhas de chuva, para cada um daqueles micro-universos, e assim passa a divagar sobre a efemeridade do brilho que eles emanam. Aquele brilho cuidadosamente registrado em uma tela de textura granulada. Uma aquarela cujo alto preço não me impede de cometer o pecado de acariciar a rusticidade de sua superfície com a ponta dos dedos. Apraz-me o frêmito. É como, por um momento, possuir (implantado em sua própria mão suja) o dedo de Deus, que afunda nos pântanos e no estômago quente e pulsante das árvores - Sinto meus olhos esgazeados e perdidos naquela imagem tão particular e passo a balbuciar palavras inaudíveis: “Eu mesmo sou recluso de meu aposento que, ao mesmo tempo, é palco das minhas insones noites. Resta-me a alma”.
Vagarosamente, percorro as paredes cujos desenhos geométricos do papel se misturam em minha mente. A meu lado, um lindo vaso de cristal tcheco sobre uma toalha de crochê. Nele, uma dúzia de rosas vermelhas. As rosas estão vicejantes, belas em sua plênitude de rosas ser.
São três horas da tarde. O telefone toca: alguém pergunta se recebi as rosas. “Sim. Obrigado”. “Sim, são lindas”. “Não, não vou.” Deixo o telefone escorregar de minha mão.
No enleio do fumo, no caminhar trôpego, minha mente divaga sobre a noite anterior. Ah, Minha primeira exposição! Mil perfumes, abraços, flores, flashes, beijos estridentes, sorrisos efervescentes, olhos flamejantes, mãos geladas, sucesso... Sucesso! Borbulha a sopa da humanidade no caldeirão do mundo e eu me quedo vendo os espectros da fumaça morrerem diante da lâmpada.
Seis horas da tarde. Minha mente viaja e, sem reconhecer fronteiras, agora estou num jardim de uma casa senhorial no sul da França, jogando xadrez com um garoto sardento que não pára de contar estórias maravilhosas e absurdas, como se elas fizessem parte de sua rotina. Dentre seus contos ligeiros, chamou-me atenção em especial um que ele contou com os olhos arregalados: falava-me de um certo ermitão que vivia num lugar ermo nas redondezas de Alhambra. Tamanha solidão o tornara uma espécie de híbrido que transitava entre o real e o irreal, que não conhecia o limite entre vida e arte. Certa noite estrelada, o homem recebeu uma visita inusitada: seu amor platônico, uma figura quase pueril se materializa diante de seus olhos e, em seguida, por crueldade do escritor de tal fábula, a linda ninfa torna-se um pássaro a ciscar em sua janela - ... Ah, aquele aroma inebriante dos manacás que nos cercam! Gente boa, gente amiga aquela. Um tímido raio de sol, em sua benevolência, atinge-me o peito, doura-me a alma até que passo a sentir o insinuante aroma de limão com canela no ar. Inspiro-o profundamente. O chá então é servido por lacaios de libré em um gazebo com cortinas terracota.
Mas as horas escorregam assim como a água que escorre inexoravelmente numa clepsidra. E o ciclo vai se fechando, a morte vai se colidindo com a vida. Cada noite é um prólogo dela e a única coisa que, ao que me parece, faz de nós, os artistas, eternos é o registro de nossas misérias, de nossa reles humanidade, sempre pintada com tanto esmero. A paupérie como estandarte de nossa eternidade!
Sete horas. Ajeito o nó da gravata e penso no que pintar agora, sinto-me vazio de emoções e passo a duvidar se as emoções que já pintei foram de fato reais. Teria eu sido um fingidor? E toda dor que senti, o que era? Me aflige a idéia de não me expôr mais, preciso que me vejam por dentro, que toquem minhas vísceras para que, assim, me amem. Há em mim uma angústia sem nome e com o garfo de prata disseco a carne sanguinolenta como um irriquieto e sádico cirurgião. A meu lado, um grupo de pessoas fala e gargalha em bom volume - Um homem de bigode corta uma pimenta com uma faca lustrosa e as sementes explodem do pequeno corpo como vermes- As testas suam, cozinheiros gritam, derrubam caixas de tomate, o sommelier deita mais pinot noir na taça e, num deslize, derruba o vinho sobre a mesa, o maître enrubesce-se, os músicos atacam um bebop elétrico e ardido de merda, o wallet chacoalha as chaves, a criança corta o dedo, a velha francesa sorri com os dentes repletos de couve! As luzes falham, meus ouvidos zunem, fecho os olhos e tenho a sensação que vou desmaiar, quando vejo, do outro lado da rua de paralelepípedos, numa cafeteria, uma moça ruiva a virar lentamente as páginas de um livro antigo. Respiro fundo. Desato o nó da gravata e descubro ali a cena de meu próximo quadro... A angústia se vai e tudo volta a ter a mesma serenidade das dezoito e cinqüenta e nove..
Meia noite. À luz da lâmpada, as rosas baças são circunscritas por um brilho que as ajudam a mostrar um viço que já não têm.
Três horas. Madrugada. O cansaço me assola e o sono, sem ajuda química, não vem. Submeto-me, mais uma vez, a meu vício. Ingiro alguns comprimidos e desmaio. Sono sem sonhos... Sonhar pra quê?
Três horas da tarde do dia seguinte. Acordo. A princípio não sei onde estou, mais um pouco, e o choque com o real: olho para o vaso das rosas e vejo os cabos ostentando as sépalas vazias. As pétalas, com tons amarronzados, jazem na toalha de crochê.
O telefone não toca.
Sinto a chuva caindo do lado de fora, ouço o bramir do mar; abro uma fresta na cortina, e com a face assustada, olho pelo quadrilátero da janela florida, recosto-me sobre a fina película de vidro e observo as efêmeras bolhas da chuva sem poder tocá-las... Embora sempre tenha almejado.