O Dia de Chuva - Lia de Sá Leitão – 14 /05:2008
( texto revisto em 27/ 08/ 009)
Os melhores dias na fazenda sempre foram os de chuva, o cheiro de terra molhada, bosta de vaca, açúcar. Tudo se misturava ao sabor no ar de café moído, broas e bolos, queijo da terra, manteiga de garrafa e sucos de pitanga, cajá e maracujá vindos da cozinha.
Ninguém saía da varanda e os brinquedos de criança giravam em torno de dominós e cartas de baralho no tradicional burrinho, os menores brincavam de bola e outros de quebra cabeças, não havia a facilidade do vídeo game nem computador. Os mais calmos brincavam de roda e os mais alvoroçados de barra bandeira.
Particularmente, eu ficava ali na varanda com as mãos no queixo. O tempo que durasse o aguaceiro. Olhava com curiosidade aquelas lágrimas no vidro respingado das telhas. Amava imaginar mil sonhos para quando crescesse e me tornasse a dona da Divina Graça, esse era meu grande segredo só revelado para o Padre nas confissões, nunca tinha nada de tão grave para confessar, nunca acreditei em pecados e os meus eram tão bobinhos, roubava frutas pelos quintais, chamava alguns palavrões, dava dedo aquela expressão peniana pelas costas da tia Genoveva. Sempre fui boa nas respostas de ponta de língua e não deixava de fazer raiva a mamãe e ao pessoal que me arreliavam a alma infantil.
Diziam que a confissão ao pé do padre era sigilosa, nunca vi necessidade em manter um segredo de morte para tolices de menina, como todos eram obrigados a visitar o confessionário pelo menos uma vez por mês, lá ia eu de vestido branco de organdi, um laçarote de fita de cetim torto nos cabelos e as meias três quartos e o sapato de verniz branco. Na véspera da Missa na Capela não tinha perdão, a fila era grande como eu nunca tinha nada a contar de grave ficava inventando as histórias não seriam mentiras, mas teriam uma bagagem de fantasia sem igual, eu tinha que gastar tempo para os adultos entenderem que estava carregada de tranqueiras, na verdade, sempre imaginei o que os adultos imaginavam do que eu era capaz de criar por pecado, tudo era muito divertido, o Padre pigarreava, dizia menina isso não é pecado, e eu insistia, mas eu fiz de maldade, e o Padre mas você não tem pecado, e eu insistia mais e mais até que o Reverendo se irritava e berrava do confessionário, você me venceu! Dez Ave Maria, cinco Anjo do Senhor, e um Pai Nosso! Ah! Levantava-me feliz, mãos postas e ar de contrição. Tia Josefina olhava com os olhinhos azuis e miúdos escondidos pelas lentes de fundo de garrafa quase verde, como quem pensava, mais uma astúcia dessa encapetada!
Portanto só o Padre sabia sobre meu interesse em ser a Poderosa dona da Divina Graça e por ela eu morria de paixões.
Naquelas tardes chuvosas desenhava minhas histórias sem letras, meus personagens sem tempo. Cantava minhas melodias mais amadas ou criava minhas próprias letras nunca gravadas.
Escrevi cartas para ninguém, cartas infantilmente apaixonadas pelo menino que jamais soube do meu amor tranquilo.
Escolhi num dia de chuva o perfil do companheiro que seria o herói dos meus sonhos, engraçado tive tantas paixões, as demoradas, outras furtivas, e a mais demorada transformou-se em amor, amor desses brabos que a gente definha dia a dia, mas o povo da casa só percebe quando as olheiras parecem uma máscara de carnaval de um personagem ressacado de solidão.
Nenhum companheiro, com mais ou menos tempo de convivência ou conivência coube em meus sonhos.
Sempre ficou um vazio enorme.
É difícil explicar e mais ainda de imaginar alguém despojado de bobagens e acúmulos de sedimentos de vida possa sofrer por falta de preenchimento de um companheiro imaginário.
Nos dias de chuva minha alma sorri desde criança ali presa na varanda lateral da Casa Grande onde ninguém passava por lá por medo ou distância, sentava entre os respingos e a cerâmica nem mofada, nem enxuta do chão frio.
Decidi escrever sobre o dia de chuva pela identidade da criança determinada a ficar com a Casa Grande da Divina Graça e a mulher que escreve o seu tempo.
Hoje chove, não tenho mais a Divina Graça em minha vida, nem os amores furtivos, a dinâmica é outra, o mundo evoluiu acredito que as dores de cada dia também aumentaram e a criança introspectiva dos dias de chuva ressurge a cada tempo fechado e cinza.
As recordações são fortes, os cheios da cozinha de Ba envolve o pensamento e a distância encurtando o ontem e hoje.
A saudade do almoço e das sobremesas fazem ler o livro das receitas e dar uma dica para os caros leitores de como esquentar alguma saudade, assim, o tempo flui, a vida continua agitada , feliz, só o dia chora. Vá para a cozinha, retire os ingredientes necessários para uma deliciosa carne assada, um tabule e um arroz com damasco. Caso esteja só, diminua as quantidades, fazer o quê?
Carne Assada
Ingredientes
1 kg de lagarto, 2 colheres (sopa) de vinagre, 2 folhas de louro, 1 cálice de vinho madeira
3 colheres (sopa) de azeite de oliva, 1 cebola, 1 colher (sopa) de manteiga, 1 cravo da índia
1 tomate,10 batatas pequenas, 100g de azeitona pretas, 1 tablete de caldo de carne
sal e pimenta a gosto
Modo de Preparo
Esfregar a carne com sal e pimenta e regar com o vinagre. Deixar nessa marinada por 2 horas, pelo menos. Refogar a carne no azeite e manteiga até dourar de todos os lados. Acrescentar a cebola, o tomate, o cravo e o caldo de carne, dissolvido num copo de água fervente, aos poucos, cozinhando em fogo brando até a carne ficar macia. Juntar as batatas e mais água, se necessário. Quando estiverem cozidas, adicionar o vinho Madeira. Deixar ferver por 5 minutos. Pôr as azeitonas e servir a carne fatiada, rodeada de batatinhas.
Tabule
Ingredientes
1 xícara (chá) de trigo moído, 1 maço de salsinha, 2 talos de cebolinha verde, 1 maço de hortelã fresca, 5 tomates médios sem sementes, 2 pepinos pequenos, 2 cebolas pequenas
4 colheres (sopa) de azeite de oliva, 2 limões sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de Preparo
Colocar o trigo de molho na água durante 20 minutos. Retirar a água e espremer bem na mão. Picar as ervas, os tomates, os pepinos e a cebola, misturando tudo com o trigo. Preparar o molho com o azeite, suco de 2 limões, sal e pimenta-do-reino. Regar o tabule com o molho e servir rodeado por folhas de alface
Arroz com Damasco
Ingredientes
1 cebola média, 4 colheres (sopa) de manteiga, 2 xícaras (chá) de arroz, 5 xícaras (chá) de , água,1 tablete de caldo de galinha, 1 envelope de açafrão sal a gosto, 1 colher (chá) de canela em pó, 100g de damasco picado.
Modo de Preparo
Refogar a cebola picada na manteiga. Juntar o arroz, a água, o caldo de galinha, o açafrão, o sal e a canela. Cozinhar em fogo brando até o arroz ficar macio. Tirar os caroços das tâmaras e misturar ao arroz. Deixar alguns minutos para tomar gosto e servir.
Garanto que o caro leitor vai amar as receitas experimente, arrume a casa ou o apartamento como acabei de fazer, abra o livro de sonetos de Florbela Espanca, ou Felicidade Clandestina de Clarice Lispector coloque em cima da cadeira. Desloque a cadeira até a varanda e suspenda as pernas, não digo que acenda um cigarro, mas abra um bom cabernet chileno e fique vasculhando as idéias, mesmo no devaneio tenha cuidado para não queimar o almoço.