Antes dos Azuis
Elane Tomich
Meu irmão olhou para mim com olhos de velho e sorriso de criança e mais uma vez
me feriu com o agudo repetitivo golpe do "tomas conta de mim se nossa m ãe
morrer?"
(Tomo, tomo, tomo! Mil vezes. Ai, Meu Deus, perdoa-me a falta de paciência,
perdoa-me! Desta vez pago as promessas antigas e, se eu não pagar, "dane-se",
mas olha para mim. Pago: vou a Bom Jesus da Lapa... Pra valer, desta vez...
vez... vez... Entro de joelhos, de joelhos não, mas entro naquela gruta a rezar,
orar de joelhos sim, mas com joelheiras... Dá-me paciência, Senhor. )
"Conta pra mim uma história?...´"
(Meu Deus, eu vou ao santuário de São Judas Tadeu, Ó Santo das Causas
Impossíveis, Santa Rita de Cássia, Rosa Mística, minha Mãe Oxum, Torre de Marfim,
Templo de Davi, Shalom, Espíritos de Luz, salvai-me).
"Conta pra mim?
Faz de conta que tu me dizes que não vou sofrer, que nunca mais tomarei choque
elétrico e que os ratos morreram. Lá fora cantarão para sempre os pássaros
marrons, os que tu gostas, gosta; aqueles que te acordam haja ou não, sorriso de
sol. E que hão de preservar na cidade as árvores cheirosas e os ventos de
agosto. Eu ainda teria as pernas e poderia alçar pipas azuis, só azuis. Aquela
flor de cactos que a mamãe gosta, você diria para mim que duram mais que vinte e
quatro horas e ela sorriria mais que um dia ao ano e voltaria a dizer coisa com
coisa, que agora virou relógio... Reza nos horários certinhos. Orienta-se apenas
pelo cheiro da murta e pelo exalar da dama da noite. Dou risadas pensando que
nossa mãe virou um relógio movido a bio odores. Sabe, Tião Marrão? Deixa-o viver
na tua história, a que tu vais contar-me. Ele sabe tudo quanto é metáfora e me
faz sorrir quando toca flauta de talo de mamoeiro e me faz acreditar que ainda
sei tocar piano.
Diga-me que as teclas pretas são como quartzo lapidado em meio
tom dos ventos que sibilam medos na minha janela.
A doença do açúcar não me assaltaria no meio da vida e nossa avó faria pães de
Natal com recheio de figos. Diga, ainda, para mim, que nosso pai não saiu daqui
encaixotado e, os que se vão, agora, ficam em vasos de porcelana, pintadas de
flores azuis, só azuis.
Assim será com nossa mãe quando se for e tomarás conta de mim, para sempre.
Abrirás os vasos de porcelana e espalharás as cinzas dos que partiram pelos
pomares da fazenda da avó e as cinzas serão asas de borboletas azuis, só azuis.
Voarão até a cachoeira: muitos metros de queda livre, livre...Livre?!
Nem mais a água, nem mais o ar, nem mais o pensamento. Mas aí, que pena!, as
borboletas molharão suas asinhas que fechar-se-ão e elas hão de cair em
parafuso como meu pensamento que
cria histórias de super-heróis, super-vilões, super-poderes com super-
velocidade de hélice que fura seu próprio inferno antes das pílulas azuis, só
azuis".
Então, ao som da voz do meu irmão, comecei a fugir daquela tarde, a correr
desesperada pelo raso pântano do sono, lento, sobrenatural como o monólogo
esquizóide da fraternidade, ainda assim, cheio de amor. Se duvidoso,
necessário se faz mais ainda.Desesperada, não consegui de pronto a rapidez do
sonho e concordei: "eu tomo conta de ti" enquanto fugia do ar lodoso daquela
tarde quente, enlameada de rotina. E, naquela voz que me sonhava a voar como
borboletas de asas esquizofrênicas, cheguei ao paraíso.
Foi então que minha mãe cantou a ladainha de Maria e eu soube que era chegada a
hora do Ângelus. E soube, também, que eu ficaria como um relógio, a dar voltas
seculares em cada minuto de sobrevida. -Mistérios Lodosos-. A cuidar do vazio
do meu retorno, para sempre raízes, num lampejo de corredor familiar.