HOMENS BRUTALIZADOS

Estava escrito no cartaz e ele tinha intenção de comprar.

Na verdade, o interesse surgiu devido à propaganda distribuída por toda a cidade em obscenas letras vermelhas: “Vende-se homens brutalizados. Grande liquidação!"

Vivera até ali sem necessitá-lo, mas agora, no entanto, formaria coleção deles.

Livre de burocracia, fazia-se financiamento com qualquer instituição financeira em suaves prestações. No pátio, estavam expostos para os compradores interessados.

Havia grande variedade. A miscigenação produzia excelente material. Em nenhum outro lugar do mundo encontrava-se variadas etnias postas lado a lado. Para aqueles que, por um acaso, temessem a brutalidade, os exemplares vinham com garantia de fábrica e a troca era sem maiores transtornos.

— De qual deles o senhor gostou mais?

Cansado de vendedores querendo ludibriá-lo, deu pouca atenção a mais este.

Fora precavido apesar do impulso repentino.

Há meses via nos jornais o alerta das autoridades ao realizar tal negociação. Temia-se um colapso. A desconfiança superava as facilidades de aquisição, a fraude tomava proporções inesperadas.

Ainda naquela manhã ao abrir o jornal, deparou-se com a notícia de comprador que ajuizara ação por danos morais contra uma revendedora:

“Adolph X (preservamos a identidade), 52 anos, empresário, na

madrugada de 18 de agosto de 2009, acordou com ruídos que

vinham de seu escritório. Ao verificar o que ocorria, presenciou a chocante visão que o motivou a ingressar com o pedido de troca de seu homem brutalizado, ressarcimento pelos prejuízos e danos morais: o objeto sentado na poltrona, ouvindo música, lia um exemplar de colecionador, peça obsoleta, mas nem por isso menos perigosa, que estava nas prateleiras. O antigo livro trazia princípios, como tentou alegar o Objeto em clara constatação de seus defeitos e a capacidade pensante que assombrou o aposentado que passou a temer por sua segurança e de seus familiares. Foi necessário, com a chegada dos técnicos, utilizar um método de costura com o grampeador que havia no escritório para que o objeto fosse controlado de seu confuso diálogo.

Procurada pela redação a multinacional fabricante dos Objetos recusou-se a comentar o ocorrido.

Constatou-se nos últimos dias crescimento na devolução, embora as autoridades não confirmem a calamidade.

Especula-se que em breve haverá recall para substituição de uma peça que acreditava-se, com as várias adaptações realizadas nos últimos anos, estivesse expurgada da Espécie. A multinacional, porém, não respondeu sobre mais esta questão”.

O comprador jamais tivera dúvidas. O sistema funcionava e não havia de ser nada, incidente isolado, mas acautelara-se quanto à compra. Os preços reduzidos drasticamente como medida do governo para que o colapso não se confirmasse, parecia ter dado resultados. Ele não era o único que apreciava os exemplares expostos.

— Interessado neste?

— Talvez. Quais as especificações?

— Este exemplar é muito bom, senhor! Veja só: vinte e cinco anos, dentição perfeita, ótima para morder, iletrado, jamais obteve informação que não fosse aquela programada pela matriz. Saído de fábrica agora!

— Algum decapitado?

— Nos nossos testes obteve alto nível de desempenho nesse quesito. Nenhuma vértebra intacta, tortura pré-morte, ou seja, se o senhor procura o melhor, aqui está!

— Não sei... De qual nacionalidade origina?

— Meio europeu, meio africano ... As formas de pagamento estão incríveis, além da redução imposta pelo governo, garantimos mais 10% na compra desse exemplar!

— Quais as formas de pagamento?

— Qualquer uma! Cartão, cheque, financiamos, pagamento à vista... Só hoje essa promoção. Pagando à vista fazemos pela metade do preço!

— Qual a altura?

— 1,90! Perfeito para intimidação! Aliás, este vem com um acessório de fábrica. Deixe-me mostrar ao senhor... Olha só!

— Alicate? O que aconteceu com as armas?

— Numa pesquisa de mercado constatamos que a aniquilação instantânea não satisfazia 30% dos compradores. Em estudos, as técnicas dos anos 70 obtinham, nos testes de laboratório, a máxima satisfação. Portanto, esse é o nosso novo item de fábrica que acompanha o exemplar.

— À vista 50%, não é?

— Fechamos negócio? Entregamos em sua casa!

Reuniu filha e esposa quando abriu o compartimento em que vinha o exemplar.

— Forte né, pai!

— Escolhi o melhor, minha filha! E barato, precisavam ver. Mas se explica, vendem como água!

— Mas querido, você não tem medo de que ocorra alguns dos defeitos que os jornais tem falado?

— Relaxa! Caso isolado.

— Faz ele funcionar, pai!

— É só mandar, filha, que ele faz!

— Seja a primeira, minha filha!

— Tá, mãe! Deixa pensar... Já sei! Homem brutalizado, vai na casa da vizinha e traz a vadia da filha dela pra mim!

A eficiência foi comprovada.

Em questão de minutos, com o braço direito fraturado — orientação de fábrica para que não danificasse em excesso as vítimas —,o Exemplar trazia a menina.

— Não insulte, minha filha! Não se rebaixe a esse tipo de comportamento nem perca tempo com bobagens! Peça, que o homem brutalizado faz por você!

— Puxe os cabelos!

Cabelos arrancados.

— Usa o alicate, filha!

— Isso, mãe! Arranque as unhas!

Feito.

— Olhe querida: no manual diz que uma ótima técnica é a que se utiliza de ferro aquecido! Deixa ver as instruções: 1) aqueça o metal até que adquira uma cor avermelhada, incandescente; 2) ordene ao exemplar que insira o metal já aquecido nas genitais da vítima; 3) aconselha-se que, posteriormente, realize o aniquilamento da vítima para que, com os gritos, não afete sua audição.

— Farei isso depois! — disse a mulher.

— Já acabou, mãe?

— Você mandou que fosse terminado!

— Mas é muito rápido!

— Depois você escolhe outra! Não chore!

Havia sempre os infortúnios nas compras recém realizadas, mas com essa o homem se sentia feliz. Fora uma boa escolha.

Mesmo com os conselhos da esposa para que o exemplar fosse mantido do lado de fora, o homem insistira em mantê-lo protegido. Chovia; talvez o clima causasse avaria do objeto.

Pensando se tratar de um sonho, foi com horror que percebeu não ser.

A música vinha baixa da sala de estar.

Acordou a mulher e juntos desceram as escadas pensando no transtorno que teriam na troca do Exemplar, antes tão eficiente, se houvesse apresentado os defeitos alertados pelo jornal.

Para alegria do casal nada se alterara na brutalidade do Exemplar. Havia apenas escoriações no corpo resultante do embate com outro homem brutalizado que adentrara sua casa sob as ordens da vizinha que acabara de adquirir também o seu exemplar.

Pela manhã limpariam a bagunça. Era tarde, precisavam dormir. A esposa apenas não podia esquecer de ligar, assim que acordasse, para o serviço de limpeza para que retirasse os corpos de sua filha, da filha da vizinha e do homem brutalizado que estava em estado deplorável desprovido da pele que o exemplar comprado pela manhã tratara de arrancar com o alicate.

— Não disse! Tudo especulação. Foi uma ótima compra!