VOLTA PARA CASA

Se tudo já foi dito significa que retornamos ao caos, prontos para dizermos tudo de novo. Não um eterno retorno à Nietzsche; retorno de qualquer outra espécie, que eu na roda deste ciclo, nada de nada de nada de nada de nada, se é que tal início de discurso se pressuponha sentidos, se proponha direção.

Do palco na sala, ouço o cicio dela, monologando-se no próprio quarto. Compreendo: a realidade do mundo exterior, imagem onírica a ocupar a Caixa, assim como a Caixa a simular-se realidade, quando-me em movimento no mundo exterior.

A platéia não existe nas poltronas da sala, nem ao redor do leito. Os demais fantasmas – vários se desconhecem uns aos outros - nenhum aplaude a Peça que se desenrola. O fantasma a atuar no momento, sentencia: “Qualquer Império, Erro Monstruoso, já a partir da Idéia de Império.”

Tento captar sílaba reconhecível no cicio que vem do quarto. Ela diminui-lhe ainda mais o volume, como se me adivinhasse o intento. Avanço pelo corredor e, provocativa, pergunto: “Tudo bem?” Ela, astuta: “ Tudo bem.”

Aperto ao peito um Dantesco Incesto. Devem existir sobrevividas estrelas em algum céu; certamente eu, neste momento do Inferno que não se compartilha, sem qualquer possível testemunha ocular. Nós, fantasmas, lábios selados, desde o sempre, para sempre.

Mas, há o anjo, o anjo que, mesmo quando encarnado se puser a trilhar, plenamente, seus autênticos rumos, jamais nos desabitará. Ouço a chave na porta. O anjo entra, nos abraçamos, sorrimos. Do quarto, a mãe exclama-lhe o nome.

O anjo sabe de tudo. O anjo é uma trégua de nós, um descanso de mim.

O anjo altera a disposição dos objetos da sala, desarranja-os. Retira de sobre o tapete a mesa-de-centro; enrola o referido tapete, leva-o para o quintal, lava-o e o deixa estendido ao Sol; novamente na sala, afasta os sofás, varre, passa o removedor, encera o chão... A alma da sala vai ficando limpa... limpa... limpa... de todo o seu pó. O anjo prossegue higienizando a alma dos demais espaços até que a casa inteira respire... respire... respire... com os pulmões totalmente desobstruídos.

Milena, uma das três mosqueteiras, telefona todos os dias, por segundos que seja, para saber-nos se vivas, eu e a mãe. Abelhinha sem pausa, esta mosqueteira: supervisiona feiras de livros; toma pela mão escritores consagrados, novatos, e os guia a todos, até seus respectivos destinos; acompanha, sem cansaço, as idas e vindas do filho adolescente; compassa eventuais descompassos do marido; prepara cada noite, o jantar para três, assim como o almoço do dia seguinte; jamais abandona quem quer que seja, à beira de algum ermo caminho – esta amiga a conheci, quando eu ainda me sonhava poeta e quando, no interior deste sonho, ousei publicar meu 2º livro de poemas do qual os espelhos, aos poucos, foram se evadindo, até se evadirem todos.

• Nota em agosto de 2009, bastante posterior a esta escrita: Eu ainda me sonhava poeta, em 1989, ano do lançamento do “Espelhos em Fuga”. Em 2008, quando do lançamento do meu 3º livro, o “Flores do Outono”, já nenhuma qualquer certeza sobre a escrita nem sobre a vida.

Outra mosqueteira, Tamara, caminhou comigo os tempos dos alunos. As veredas foram se multiplicando... modificando-nos o rosto de fora e o de dentro, bifurcando caminhos, entorpecendo certezas, diluindo presenças, construindo cercas; esta amiga com seus dois meninos e sua menina, todos já na Faculdade, a compartilhar comigo a dolorosa e sagrada esperança de ainda virmos a reencontrar, cada qual no próprio espelho, o rosto próprio extraviado; esta amiga que, em sua fragilidade, ajuda a suprir, com as demais mosqueteiras, minha carência de irmã, tão funda!

Simone, a terceira mosqueteira, também guerreia suas próprias batalhas, mas nem sempre tais batalhas são evidências no mundo o que nos leva, tantas vezes, a julgarmos mais fáceis os seus caminhos do que os nossos; esta amiga, presença, com as mãos cheias de oferendas, a quem minha rudeza, por razões a serem iluminadas, tem atingido, volta e meia, com suas flechas às cegas.

Dora, a amiga mais recente, se nos guiarmos pelo tempo dos relógios; ancestral se conduzidas pelo tempo sem história; jovem amiga, tão jovem, por cuja voz fala a Poesia; amiga a quem sei, que me sabe, na Dor, na Agonia; amiga por quem peço, à Vida, que lhe outorgue o dom da posse, mais e mais, dia após dia, da sua própria Natureza e lhe suavize as Dores dos Pés, para que a bailarina possa prosseguir.

Minha irmã Ada, nascidas nós ambas de um mesmo ventre, o ventre da Mãe. Tanta vida partilhando uma única Língua! Por dentro do meu sangue, na pele, pulsa a tua Inocência, Ada, inocência na qual não consigo crer, para meu mal e esta danação. Acalento a tua Culpa, a culpa que não conheces e me envenena as noites e as vigílias. Não sei o quanto daria para ter-te de volta em mim, transfeita Flor de Verdade e de Luz.

A mãe me olha com seus olhos verdes; está também com problemas de audição e isso nos é dificuldade adicional. Demasiado diversas, semelhantes em excesso, caberia a mim aproximar-me de sua linguagem, ausentar-me, deliberadamente, da minha própria, tornar-me mais água para suas folhas. Mas, o pássaro que se tornou bravio, porque prisioneiro destas paredes há séculos, impede-me muito da ternura como se ela, mãe, o algoz, não a vítima; como se ela e Ada, as efetivas responsáveis pelas renúncias de mim mesma e não eu, única ré, corpo de jurados, advogada de acusação, álibi, juiz, carcereira; a ex-andarilha, a Inconformada que brada aos Céus, a Que Não Compreende Nada. Penélope, ainda. Plutônica para sempre, ante o Incognoscível, o Inegociável.

A mãe me olha com seus olhos claros e, em certos dias, consigo trazer-nos à tona do olhar uma Criança Antiga. Falamos então do passado, sem presença de palavras doloridas. Lembramos da Avó, que se foi sem jamais ter perdido a alegria; de Namorado da adolescência, que lhe permanece no Imaginário; de meu Pai, com seu vulcão interior, seu amor esquivo, sua retidão implacável; ressurgem Ada e Ana, de mãos dadas; nascem momentos para teus versos, mãe, teus versos toscos, infantis, tardios, para meus ouvidos moucos tantas vezes. Mas, é preciso que saibas: tua vida, única razão eficiente, única clareza sob cuja sombra abrigo a minha vida.

Treze letras do alfabeto; treze ausentes: os interditos, os interditados, aqueles que, em qualquer narrativa, são Os Que Abrem. Treze de um lado; este, no centro; treze do outro; cacos sem simetria, cacos a circularem, sem eixo, ao redor dos Mesmos. Vinte e sete no total, esses degenerados. Querendo-se colar, contas soltas. Querendo-se contas soltas, fragmentos de romance que não haverá, não há, não houve. Cacos colados, como a maioria dos rostos. Treze sem causa, treze do acaso. Com efeito.

*Nota também de agosto de 2009: Os números treze e vinte e sete referem-se aos textos do livro inédito “Hidra Inofensiva para Heroísmo Nenhum”, livro do qual o presente texto constitui o centro, o núcleo, por isso “treze de um lado e treze do outro”.

Quando a Poesia se evadiu, quem sabe para onde, talvez para sempre, as palavras se reuniram, a fim de decidirem da própria sorte: optaram por tal prosa incerta, mascarada. Isto: uma mascarada. Afinal, a esta altura ou queda dos fatos, quem rei, quem rainha, quem peão, quem cavalo, quem torre... no tabuleiro pretérito.

O Planeta se aquece, aquece... as águas sobem... os ventos derrubam tudo. Apocalípticos e integrados, profetas e cientistas, todos concordes: a mais gloriosa das espécies, senhora das eras da Terra, corre risco de extinção. Isso é pouco? É muito? A Poesia não pode mesmo salvar-nos, nem ao Mundo?

Nenhuma intencionalidade que os justifique e ampare. Vinte e sete, através dos anos, através dos danos, através dos equívocos, através do Mistério para sempre exposto sem face visível; através da face à mostra a ocultar o mistério simulado; todos, apenas brinquedos para passar o tempo, ou melhor: peças para jogar tempo fora.

Texto original de 2007.