O empregado - PT 2/2

Atravessamos um estreito corredor escuro, todos em fila; dois na minha frente, um atrás me segurando pelo colarinho e muitos outros em seguida. O sujeito que caminhava na frente, chutou uma porta na outra extremidade do corredor fazendo-a abrir violentamente. Outra mão me agarrou pela camiseta e me arremessou contra uma mesa de madeira posicionada bem no meio da sala, fazendo-me rolar por cima dela e cair sobre uma cadeira também de madeira quebrando-a, mandado lascas de pau por todos os lado:

- Filho da puta! Quebrando patrimônio público! – disse um dos guardas dando uma aula de ironia

- Já era ladrão! – outro falou

- Escolheu o lugar errado seu merda!

- Vai comer carniça na cadeia!

- hahahahahahahaha!

Em meio a todas as acusações e ofensas que ouvia, pela porta vi adentrar um um dos oficiais que havia saído, agora com uma cadeira idêntica a que tinha quebrado quando me jogaram dentro da sala. A mesma foi passada de mãos em mãos e foi colocada no mesmo lugar da antiga.

Um policial, o mais velho de todos, de baixa estatura, porém robusto, calmamente aproximou-se de mim, ajoelhou ao meu lado e disse numa voz extremamente baixa:

- Senta lá na cadeira.

Eu obedeci.

Todos permaneceram em silêncio e o guarda que me deu a ordem passou a caminhar de um lado para outro, olhando para o teto e desviando-se dos outros que apenas me olhavam com os olhos arregalados, tentando de alguma forma me aterrorizar mais do que já estava. Caminhou por um bocado de tempo, olhou para a porta, se aproximou, levou a mão direita até maçaneta e se certificou de que estava destrancada. Depois, olhou bem em meus olhos e começou a falar num tom de voz alto, porém controlado:

- O que aconteceu aqui?

- Senhor, isso tudo foi um terrível erro! – minha voz estava trêmula e agitada – Não estava tentando roubar ninguém. Tinha um velho maluco do lado de fora da estação, achei que ele fosse me atacar e só quis sair rápido de onde ele estava. E acabei esbarrando na moça que depois falou que eu queria assaltá-la.

- Você só não quis assaltá-la, como também passou a mão nela, bem na bunda! Segundo palavras dela é claro.

- Isso não é verdade! – gritei desesperado

- Isso não é verdade! – disse o policial com uma voz fininha tentando me imitar

Ficou parado por alguns momentos, pensando. A sala estava em silêncio absoluto e mais uma vez se voltou a mim:

- Sabe garoto, não deveria perder meu tempo com você, e de fato não vou fazer isso. Tenho outras coisas muito mais importantes a resolver do que te levar até a delegacia, esperar horas pelo seu depoímento, preencher a papelada e tal.

- (Graças a Deus)

- Porém, o que você fez não está certo!

- Mas eu não fiz nada – o interrompi esbravejando

Mal havia terminado a frase e senti o impacto do tapa no meu rosto que tomei do policial que estava ao meu lado esquerdo.

- Cala a boca porra! Deixa ele terminar de falar!

O policial velho acenou coma cabeça para o que me bateu e continou:

- Já que o que você fez não está certo, considero louvável um pequeno castigo pelo seu delito.

- Castigo? – uma lágrima já começara a descer pelo meu rosto – Pelo amor de Deus meu senhor, eu não fiz nada. Estou aqui nessa cidade para tentar preencher uma vaga de emprego numa loja de calçados que fica aqui próxima da estação!

Gargalhadas tomaram toda a sala. Foram ficando cada vez mais altas. Um segurança foi ao chão segurando a barriga, seus olhos lacrimejavam. O policial mais velho começou a bater palmas, mordendo o beiço inferior. Ficaram nessa situação por algum tempo, apenas rindo.

Os ânimos se acalmaram, ou melhor, voltaram ao estado de se prevalecer a justiça com seriedade.

Um passou a cochichar no ouvido do outro, enquanto isso o policial que deu minha sentença foi se afastando até que sumiu porta afora e nunca mais o vi.

Chegaram num acordo plausível! Todos se colocaram numa fila, que fez a curva em cada uma das quatro extremidades da parede. E assim que se posicionaram, o da frente veio andando em minha direção e “plaft”! Um sonoro tapão acertou em cheio minha cara no lado direito. Instantâneamente ficou vermelho, quase como um tomate podre. Em seguida veio outro e mais uma vez “plaft”; o estalo ecoou por toda a sala. Senti um zumbido feroz no meu ouvido. Outro se aproximou, fechei os olhos aguardando o impacto que me surpreendeu desta vez. Um soco muito bem colocado bem no meu nariz. Pude ouvir com nitidez o “click” do osso se partindo e em seguida o sangue escorrendo como um grosso fio de linha vermelha que uma criança desenrola do carretel sem motivo algum.

E assim se passaram duas horas. Chutes, pontapés, socos e tapas. Acho que tapas foram mais de três duzias. Estava detonado, conseguia até andar, mas fiz um showzinho apenas para não apanhar mais. E deu certo, pois quando me viram debruçado sobre a mesa, quase apagado, trataram logo de me agarrar pela blusa e me arrastar de volta até o corredor. No entanto não saímos pela mesma porta que iria dar no pátio da estação e sim por uma portinha de ferro, mais ou menos no meio do corredor. Quando esta foi aberta, já dei de cara na rua, no mesmo lugar que estava parado quando percebi que tiinha feito o caminho errado horas atrás. Eles ainda me seguraram por alguns segundos e antes de um deles me presentear com uma solada bem no meio das costas, uma boca quase encostada em minha orelha disse, quase sussurrando:

- Acho que você deveria prestar um pouco mais de atenção a próxima vez.

Fui ao chão. A porta violentamente se fechou e também nunca mais tornei a ver nenhum daqueles policiais. Meu rosto estava manchado de sangue seco. Minha camiseta tinha uma um enorme borrão vermelho; se alguém perguntasse algo diria que havia acabado de sair do dentista; ele era louco!

Com algum esforço me coloquei de pé. Olhei para os lados e a única coisa que vi, foram duas crianças, um menino e outro menino, que cessaram a brincadeira para de alguma forma tentar entender o que aconteceu. Ainda bem que não vieram perguntar. Respirei com dificuldade, olhei para o horizonte e comecei a andar. Não havia mais a possibilidade de chegar na madita entrevista. Os seguranças fizeram o favor de me jogar exatamente onde estava antes. Não poderia nem ao menos entrar na estação a fim de tomar o trem para casa; não queria encontrar com nenhum deles. O jeito era caminhar cerca de quarenta minutos até a próxima parada e de lá sim embarcar.

Meia hora de caminhada. Estava suando feito um porco de meia tonelada. Avistei uma praça um pouco adiante com alguns bancos de cimento e um belo jardim no centro. Decidi me sentar por lá e descansar por alguns minutos. Minhas pernas estavam doloridas, não sei se eram pelas pancadas ou pelos passos, afinal, nunca tinha andando tanto assim, mas enfim, quem liga pra isso, isso é o de menos. No acento apoiei minha cabeça junto de minha mão, como se estivesse psicografando uma carta de um morto frustrado qualquer. E como o um perfeito médium, senti que algo se aproximava. Rapidamente ergui a cabeça e vi que era um cachorro, um vira latas. Ficou ali me cheirando, não esbocei reação. Cheirou minha mochila, depois passou a lambê-la, mais alguns momentos mordeu a alça e tentou levá-la embora. Aí não! – pensei comigo mesmo, e mandei um cascudo na cabeça do sarnento que saiu berrando pela praça. Um homem que repousava num banco próximo de mim olhou a cena com repulsa. Fez uma cara de nojo digna de um oficial da Gestapo que esbarrou involuntariamente num prisioneiro judeu, levantou-se e caminhou em direção a zebra.

Vendo aquilo, senti algo estranho. Fiquei realmente irritado com o sujeito; afinal quem era ele para me julgar tão fatalmente. Será que ele pensou em mim como um assassino de animais, aquele tipo de psicopata que começa matando cães e gatos antes de partir para as pessoas? Enquanto ele se distanciava, com as mãos nos bolsos, meio encurvado, fazendo-o parecer mais baixo do que já era, essa ideia sobre julgamento não me saiu da cabeça e ele foi talvez décimo quarto a me julgar só neste dia. Isso não poderia ficar assim, não estava certo; dessa vez faria minha defesa!

Rapidamente o segui e antes de atravessar a rua, ainda na praça, me coloquei em sua frente:

- Aquele cachorro que bati era seu?

- Não. – respondeu de súbito, pego de surpresa

- Você pretende levá-lo para sua casa?

- Não.

- Por que não?

- Não tenho tempo pra cuidar de cachorro. – e passou a caminhar - Agora me dá licensa, to atrasado, preciso voltar pro trabalho!

- Não, espera só mais um pouco! – insisti

- O que você faz da vida? – perguntei

- Sou vendedor.

- E vende o que?

- Bijuterias.

- Nossa! Que legal! – respondi já um pouco exaltado. Confesso que já estava um pouco desequilibrado – Você sabia que tem pessoas por aí que compram jóias para seus cachorros de estimação?

- Não cara e não to nenhum um pouco afim de saber! Agora sai fora, antes que isso passe pra um outro nível.

- (era o que eu queria)

- E que nível seria esse seu FILHO DE UMA PUTA? – gritei

- Esse!

Antes de esboçar qualquer reação, senti o soco no meu peito. Mais uma vez fui ao chão. Fiquei caído pressionando as costelas com as duas mãos. Não pude ver, mas imagino o quão horrível estava minha feição. Fiquei estático até a sola da bota que o homem usava vir de encontro ao meu rosto. Que tragédia! Meu nariz sangrava de novo, desta vez com muito mais intensidade. Outro chute; meu cérebro chocalhou dentro do crânio. Parecia até que eu estava bêbado. Outro chute, outro chute e tudo foi se apagando, outro chute e escuridão.

Provavelmente fiquei apagado por algumas horas. Lembro de ter acordado numa salinha com as paredes tão brancas que chegavam a brilhar (puta merda, então existe), uma porta sem maçaneta e a cama onde eu estava deitado. Tentei levantar, mas estranho, não sentia minhas pernas; nem mesmo formigavam. Me desesperei e gritei por socorro. Ouvi passos de alguém correndo do lado de fora da sala e bruscamene abrindo a porta; uma enfermeira, gorda, baixinha, suada e assustada:

- Mas que porra ta acontecendo aqui!

- Eu não sinto minhas pernas – Falei em lágrimas

De súbito ela se acalmou. Aproximou se de mim lentamente e sentou na ponta da cama:

-É meu filho, parece que aquele cara bateu pra valer em você mesmo. Segundo o médico que te tratou, a possibilidade de você ficar com uma sequela vitalícea era alta e realmente aconteceu – enpinanado o rosto em direção as minhas pernas - desta forma aí.

- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh meu Deus!!!!!!!!!!!

Calma meu filho. Existe um motivo pra tudo nessa vida.

- Porra de motivo o caralho. O que você sabe sobre isso? – Nunca havia gritado tão alto

- É tem razão. Desculpa, vou te deixar sozinho.

- Espera – engolindo lágrimas

- Você ao menos sabe se pegaram o cara?

- Não meu filho, não sei. – saiu e nunca mais tornei a vê-la de novo.

Os dias se passaram. Por algum motivo os médicos não me davam alta. Além de não sentir minha perna, pude perceber que demorava um pouco para pensar nas coisas e minha voz estava enrolada. Mas não acho que isso era motivo suficiente para me deixar internado por tanto tempo. Enfim, vai entender.

Os dias continuaram passando e numa bela manhã de quinta feira, alguém caminha em direção a porta; é o médico. Se minhas pernas estivessem boas, daria um pulo da cama, afinal ele nunca me visitava durante a manhã. Provavelmente algo aconteceu, talvez a notícia de que eu pudesse ir embora:

- E aí rapaz, tudo certo?

- Tudo indo e você?

- To bem, obrigado.

- O que você tá fazendo aqui? - não conseguia mascarar a curiosidade, mas também não havia razões para isso.

- Tem uma pessoa aqui fora querendo falar com você.

- Quem?

- Um policial eu acho. Bom vou pedir para ele entrar.

- Nossa! Um policial! – ainda não tinha percebido, mas peguei trauma de policiais e qualquer coisa relacionada a lei.

O médico saiu e o homem entrou. Usava uma roupa social, camisa branca e calça marrom. Aparentava ter uns quarenta anos, porém em boa forma.

Segurava um papel dobrado na mão direita. Não se apresentou e já foi falando.

- Estou aqui para tratar de um assunto que é de seu interesse

- (ah já sei)

- Vocês pegaram o cara que fez isso comigo não é?

- Uma coisa de cada vez amigo. - seriamente falou

- Tenho aqui uma ordém de prisão contra você. Uma moça pegou os seus dados com uns seguranças de uma estação de trem aqui perto e te denunciou por abuso sexual e tentativa de roubo.

Entrei em desespero mais uma vez. Se eu tivese uma arma perto de mim, não pensaria duas vezes antes de usá-la:

- Não, de novo! Isso não aconteceu! É tudo mentira!

- Não meu jovem – disse o policial – ela tem uma testemunha; um gentil senhor que presenciou tudo e com muito bom coração compareceu junto com ela na delegacia. E não acho que ele iria mentir sobre isso. Ele é um religioso fervoroso. A mentira não faz parte de sua personalidade.

Nem respondi, apenas virei minha cabeça para o lado da parede e assim permaneci, contemplando a beleza daquele branco sem expressão, que nada significava:

- Para evitar que você se complique mais, estou te algemando na cabeceira da cama, certo? Assim que você estiver melhor, você vai pra delegacia.

- Eu to paraplégico cara. Não precisa disso.

- Eu sei. – pude ovuir um risinho - Isso é só pra você já ir se acostumando.

Em silêncio se aproximou, me algemou e se dirigiu a porta, mas antes de cruzá-la, voltou a me olhar e me passou uma última mensagem:

- Mais uma coisa! Encontraram o rapaz que te deixou nesse estado – já não me importava mais com isso, estava tudo perdido – Não foi muito difícil achá-lo. Um dia depois do ocorrido ele começou a trabalhar numa loja de calçados por ali, antes trabalhava vendendo bijuterias de porta em porta; trabalho desgraçado, você não acha? Então uns senhores que sempre desperdiçam as horas do dia naquela praça indicaram o local da loja e o pegamos. Agora é só esperar o desenrolar do processo. Até. Se cuida rapaz.

- (...)

Jimmy Conway
Enviado por Jimmy Conway em 20/08/2009
Reeditado em 20/08/2009
Código do texto: T1763587