O empregado - PT 1/2
Eu estava cansado.
Lembro de estar em casa sem fazer absolutamente nada, um perfeito mandrião. Até o momento em que ouço o som insuportável do telefone tocando do outro lado da casa, fazendo-me levantar de minha cama de pregos e com passos de tartatuga ir atendê-lo. Do outro lado, uma mulher (dona de uma belíssima voz por sinal) envolveu minha audição com uma história a respeito de um emprego que me aguardava num município vizinho ao meu; a leste para ser mais exato. Segundo a mesma, fazia parte da equipe de funcionários de uma loja de calçados e tinha em mãos minha ficha de inscrição que eu havia encaminhado para lá alguns meses atrás. Achei isso muito estranho; de forma alguma teria mandado uma solicitação de emprego para a cidade vizinha. Nem mesmo na minha cidade mando. Não por preguiça, mas sabe como é, sou comunista assumido e nunca existiu a possibilidade de ajudar essa maldita engrenagem distruidora do amor e do bom senso chamada capitalismo a girar. No entanto, como a dama se deu ao trabalho de me ligar e tão educamente solicitou minha presença lá, não havia outra alternativa a não ser tomar o trem e apreciar uma viagem de duas horas, onde a cada minuto, a cada metro percorrido me impressionava mais e mais com a monstruosa quantidade de NADA que me cercava! E também havia o fato de que estava precisando de algum dinheiro, mas não vou falar sobre isso.
Porém saiba de uma única coisa; o dinheiro era para minha sobrevivência, um verdadeiro comunista jamais gasta seu dinheiro com utensílios fúteis. No meu caso queria apenas trocar os pedais de plástico da minha bicicleta que já não estavam muito apresentáveis, por uns de metal com alguns detalhes em prata, que certa vez vi numa loja perto de casa. E também um casaco de pele, mas na época estava em dúvida entre pele de raposa ou de carneiro, pois o frio por aqui é terrível, e nada melhor que uma segunda camada de pelos ou lã bem cuidados para aquecer o sangue puro de um sujeito humilde e de bom coração, no caso eu. Mas acho que acabaria ficando com a de raposa, a de carneiro é muito simples. Enfim, são coisas no qual realmente necessito, como você já deve ter percebido.
Agora voltando ao assunto; era uma quinta feira de manhã, fazia um frio desgraçado e lá estava eu dentro daquele trem imundo que é mais lento do que o raciocínio de minha avó com Mal de Alzheimer. Acho que se começasse a correr pelos trilhos chegaria bem mais cedo no meu destino, o que significa que poderia dormir até mais tarde, mas como disse antes, não sou preguiçoso, apenas dou muito valor a uma boa noite de sono e minha força de vontade tão rara de se encontrar por aí de se manter uma vida saudável baseada nisso. Dizem que os sonhos aguçam a criatividade. Pois bem, assim que o trem encostou na estação que iria saltar, esperei todas as pessoas que lotavam o vagão pularem para fora e só assim pulei também; não usei a palavra “pular” somente para expressar uma típica conotação de um sujeito que pensa escrever bem, tive que pular mesmo. O espaço entre o trem e a plataforma era enorme, vi uma senhora que praticamente teve de tomar impulso antes de sair.
Já na estação caminhei por um chão de brita, meu tênis direito estava com a sola furada, duas pedrinhas entraram dentro e ficaram arranhando meu pé. Fui mancando até cruzar a catraca que dava pra rua. Pude notar nesse meio tempo algumas pessoas me olhando de uma forma estranha, acho que nunca viram ninguém mancando antes. Chegando na calçada, sentei na beirada de um canteiro com uma enorme árvore que ficava soltando umas sementinhas vermelhas; umas três caíram na minha cabeça. Puxei o tênis, as duas pedrinhas foram ao chão, chutei- as para longe, calcei-o novamente e quando ia me levantando surge um ser em minha frente, pareceu até que se teletransportou, mal ouvi seus passos: um homem branco, careca, idade já avançada, baixo e barrigudo. Vestia uma roupa social já encardida, carregava uma pasta de couro com uma alça em seu ombro esquerdo e passou a me encarar. Olhei de volta, sério e ele me abriu um sorriso horrendo, mal tinha dentes. Ficou ali ainda me fitando alguns segundos e eu sem saber o que fazer, apenas reparava em seus dentes. Porém de súbito ele quebrou o silêncio:
- Posso ter um minuto da sua atenção meu jovem?
- Pode - respondi meio desconfiado.
- Só mais um minuto então - disse isso abaixando a cabeça.
- (merda)
E calmamente levou a mão até a pasta, puxou o zíper demonstrando uma vagareza que chegava a irritar, sacou um panfleto e estendeu-o a mim. Devagar, mas não tanto quanto ele, peguei de sua mão e o analisei; era um convite para um congresso de Testemunhas de Jeová. Que maravilha – pensei comigo mesmo - vendo aqueles desenhos coloridos que estampavam todo o pedaço de papel; um lindo campo verde com montanhas no horizonte, pés de frutas e plantas dos mais variados tipos; laranja, manga, banana, pera, abacate, maconha, cogumelos, cana, e por último a maçã. Homens e mulheres de todas as etnias rindo e demonstrando um nível de felicidade que nenhum ser humano merece vivenciar. Crianças brincando; um garotinho vestindo roupas de aposentado montado nas costas de um leão sorridente (puta que me pariu, no paraíso deles o leão se tornou um poney, o que diabos terá acontecido com a serpente?) e por aí vai.
Depois de conhecer toda a geografia do quintal do espírito santo, me voltei ao homem e ele começou a falar com certo entusiasmo:
- Meu amigo, eu sou um vigilante. Se eu lhe dissesse que estou a espera do fim do mundo e não só isso, também estou perfeitamente preparado para enfrentá-lo, o que você me diria?
- (boa sorte) Como o senhor adquiriu tal proeza?
- Participando dos congressos! Quando se faz parte do congresso, você se torna dono de um poder intelectual, desconhecido e temido por muitos.
- É mesmo?! – respondi fingindo interesse
- Exato, e agora escolhi você a dedo para te fazer este convite. Você gostaria de fazer parte do congresso de Testemunhas de Jeová?
- Não!
- Como assim não? – disse isso em voz bem mais alta e agitada que antes - Mesmo depois de eu falar sobre o maior bem que você ganhará lá! Você é ateu não é mesmo seu filho da puta?! Saiba de uma coisa, gente como você não terá salvação. Quando o céu estiver em chamas, pessoas como você, seu merdinha, serão os primeiros a implorar por misericórdia, enquanto eu estarei com minha espada sagrada em mãos dilacerando demônios, propagando e protegendo todo o amor e toda magnitude de Jeová!
- Cacete, o senhor que já está me tratando como um! – falei já bastante perplexo
- Porque de certa forma você é. Pessoas como você, que não acreditam em nada, que pensam que a explicação para tudo está aqui nesta pilha de pecados estão cegas e nem sabem disso. A personificação do demônio os vendaram tornando todos vocês em seres ignorantes, rebeldes sem causas, fornicadores, drogados, blasfemos, frequentadores de lugares que alguns de vocês insistem em dizer que é simplesmente um local para apreciação de boa música, onde na verdade eu, como um ser vezes mais inteligente e entendedor das coisas materiais e espirituais sei que tudo não passa de um culto horrendo de apreciação e adoração ao tinhoso! – enquanto ele me alvejou com todo este sermão, praticamente tomei um banho da saliva descontrolada que jorrava entre os espaços em aberto dentro de sua boca deformada.
- Meu senhor, acho que essa conversa deve parar por aqui, estou atrasado para um compromisso.
-É claro que está, seu maconheiro! (maconheiro?) Mesmo sem você me dizer uma só palavra sei muito bem qual é esse seu compromisso.
-Tudo bem, vai trabalhar como vidente então e desperdice seu tempo com algo mais (in)útil seu velho corno!
E saí em disparada pela calçada, esbarrei em uma garota que ia entrando na estação, ela me xingou de tarado, parou por alguns segundos e junto com o velho lunático ficaram me encarando. Pensei que fosse chamar os seguranças da estação. Se isso acontecesse estaria ferrado, mas graças a Deus, não aconteceu, hahahaha. De longe ainda ouvia o desgraçado gritando alguma coisa sobre eternidade e sofrimento, até que dobrei uma esquina e o som de um carro caindo aos pedaços tomou conta de tudo( será que o motorista era o demônio personificado?).
Ainda estava me recuperando do choque da conversa, caminhava bem mais rápido do que o normal, e quando tropecei num saco de lixo que estava jogado por ali, lembrei-me que nem fazia ideia de minha localização. Parei, abri minha mochila, ergui uma folha que tinha conseguido um dia antes com um mapa desenhado, onde julgando pela qualidade estética, a pessoa que tinha os direitos sobre a arte estava no mínimo bêbada. O frio ainda era forte, mesmo assim estava suando como um atleta, por baixo da minha blusa era água pura, mal movia os braços por causa da umidade. Mas depois de uns segundos passados estava imóvel e não foi pelo suor e sim por que tinha acabado de descobrir que estava no caminho totalmente errado, deveria ter saído pelo portão do lado oposto da estação. Pronto! Meu dia estava feito, teria de voltar pelo mesmo caminho que fiz e encontrar aquele desgraçado de novo. Antes de voltar, pensei comigo mesmo; se aquele devasso vomitar uma sílaba sequer em minha direção, termino de arrancar o resto de seus dentes e o mando pro hospital mais próximo! E voltei. Estava a uns cinquenta metros de onde o tinha encontrado, e o corno ainda permanecia ali, andando de um lado para outro e abordando algumas pessoas que não lhe davam atenção alguma; hm, posso ir me esgueirando pelo muro e entrar correndo na estação antes que ele me veja - pensei comigo mesmo, enquanto me aproximava. Mas como são raras as vezes em que a dama da sorte está comigo, mal dei três passos, e ele me viu. Assim que bateu os olhos em mim, começou a pular gritando “você de novo, você de novo”. Não pensei duas vezes, porém pela segunda vez saí em disparada, e entrei na estação. Ele correu em minha direção, berrando feito uma arara. As pessoas olhavam, mas ainda nem faziam ideia que aquele show todo tinha eu como personagem principal. Ouvi uns homens que estavam na fila da bilheteria xingar o velho, outros pararam e observaram com repulsa, porém a grande maioria estava rindo, gargalhavam (apenas para não omitir nenhum fato). E eu continuava caminhando rapidamente até a outra saída, até que a avistei na forma de um enorme portão de metal. A partir deste momento comecei a correr, correr mesmo, mas não durou muito; quando estava a alguns passos do portão tropecei em algo e fui ao chão, me esborrachei, o tênis voou do meu pé e foi parar a vários metros de distância. Ainda desnorteado pela queda, apoiei as duas mãos naquele chão frio e imundo e me sentei. Olhei na direção que havia caído afim de olhar o que causou o tombo e vi um segurança da estação me encarando; um gorila enorme com um ar de superioridade, braços cruzados e aquele 38 cromado pendendo na cintura; foi ele quem me derrubou. Provavelmente tinha o dobro do meu tamanho. Veio andando lentamente até onde eu estava e parou a alguns centímetros de distância:
- Veio fazer merda aqui né filho da puta! – apontando o indicador para a direita - Aquela moça ali passou sua fita, a casa caiu pra você.
- (Nossa!)
Rapidamente virei meu rosto na direção do dedo e vi a mesma moça que esbarrei momentos antes; branca, baixinha e magricela, com os braços cruzados, fazendo um bico nojento. E ao seu lado, inacreditavelmente o desgraçado do velho, com as duas mãos pressionando um livro contra o peito (provavelmente a Bíblia) e rindo, satisfatoriamente rindo, anti religiosamente rindo.
Uns segundos se passaram e surgiram seguranças de todos os cantos possíveis. Formaram um círculo ao meu redor e passaram todos a falar ao mesmo tempo. Não conseguia ouvir nada com muita clareza, exceto um “filho da puta” aqui, “ladrão” ali e etc. O círculo diminuiu seu tamanho e senti uma mão em meu ombro hostilmente me puxando e me deixando de pé. Vi que a estação estava praticamente parada, todos estavam apreciando o show gratuito do dia, sempre há algum por aí. E após todos olharem bem para minha cara de desesperado demonstrando nojo, pena, alegria, indiferença, ódio, o batalhão inteiro me levou a força para uma salinha nos fundos da guarita onde os seguranças recebem as chamadas para averiguação de infrações e se deliciam de seus almoços preparados com todo amor e carinho por suas respectivas queridas esposas.
CONTINUA...