O Barbeiro de Berlim

Fazia poucos minutos que havia chegado. Helmut era um sujeito pontual, mais do que um lorde inglês. E, ainda assim, não era um lorde. Estava longe do brilho opulento da aristocracia, infeliz ou felizmente. Não ousava se queixar. O ofício de barbeiro era honesto e lhe rendia o suficiente pra o sustento da família mesmo naqueles tempos loucos que a nação enfrentava. E, pensando melhor, estava em condição mais confortável do que a maior parte da aristocracia.

A porta da pequena sala, transformada em barbearia improvisada, foi aberta de fora. Viu alguns homens perfilados ao longo da entrada, diante da porta, ladeando a passagem de seu cliente. Era um indivíduo baixo, algo franzino e de cabelos negros que, oleosos, eram penteados de lado. Adentrou o recinto com ar sereno no rosto e, então, fecharam-lhe a porta. Era o cliente mais ilustre de Helmut, uma mente notável, tão inteligente quanto seus olhos azuis, tão afiada quanto sua língua. Conhecia-o havia muito tempo, e, mesmo após tantos anos, ainda lhe era confiada a tarefa de cortar seus cabelos e aparar sua barba. Estendeu a mão ao barbeiro o baixinho.

- Bom dia, meu caro Helmut.

- Bom dia, meu senhor – saudou-o, simpático. O sorriso de seu rosto foi refletido no de seu cliente. Ainda que tivesse uma compleição que inspirava fragilidade, aperto de mão do baixinho de olhos azuis era poderoso – não pela força física, mas pela força de seu espírito.

Ele sentou-se na única poltrona de barbeiro que havia ali. Helmut ajustou a altura e a inclinação do assento de modo a dar mais conforto àquele homem. Visitava-o a cada três dias para aparar a barba, que demorava a nascer, e aparava os cabelos a uma vez ao mês.

- O de sempre? – Era a pergunta de praxe.

- Sim. Apare a barba e corte um pouco o cabelo – respondeu seu cliente, também como de praxe.

- Sim, meu senhor.

Pegou a capa de corte e vestiu-a no baixinho, cobrindo sua farda ocre. Aspergiu um pouco de água em seus cabelos e os penteou por alguns instantes antes de pegar a tesoura e começar o serviço de corte.

- Como tem sido as coisas no governo, meu senhor?

Um suspiro antecedeu a resposta.

- Ah, Helmut, confesso-lhe que estão difíceis. É uma tarefa desafiadora, quase hercúlea, tirar nosso país dessa situação calamitosa, desse lodaçal fétido no qual fomos atolados desde a rendição. Mas não é uma tarefa impossível. O que mais nos atrapalha é a falta de compromisso daqueles que tem o poder nas mãos. Foi isso que sempre atrasou nosso desenvolvimento. Foi essa patota de ladravazes que nos colocou a todos no limbo.

O barbeiro assentiu, mas sem deixar a tesoura descansar. Havia ouvido cada palavra de seu cliente. Sua eloquência era formidável. Os fios cortados caíam sobre a capa e deslizavam até alçarem voo ao chão, pintalgando o piso de mármore imaculado.

- Algo me preocupa, meu senhor.

O baixinho encarou a imagem do barbeiro através do espelho. Tinha um jeito penetrante de olhar, tanto que Helmut não ousou encará-lo naquele momento. Silêncio. Esperava pela elucidação da questão.

- Na minha humilde opinião, as novas ideias em voga são perigosas, meu senhor. E são perigosas para toda a nação, muito mais do que poderiam ser benéficas.

No espelho, seu cliente ilustre franziu o cenho, intensificando o olhar na figura do barbeiro. Helmut, dessa vez, encarou o homem que estava sentado na poltrona. Sentia um frio incômodo, porém suave, no ventre. Ainda assim, sustentou aquele olhar.

- E por que acha isso, meu caro?

O barbeiro voltou a olhar para os cabelos de seu cliente, retomando o serviço para poder expor seu ponto de vista.

- Porque os vermes que deixaram o país como está não estão apenas dentre eles, meu senhor. Há muitos distintos senhores de boas famílias alemãs que contribuíram muito mais para a bancarrota de nossa nação do que eles. E, além disso, eles são importantes para a nossa economia. Não somente a nossa, mas a de muitos outros países, na Europa ou na América.

Um brilho perspicaz surgiu no azul dos olhos do homem que tinha os cabelos aparados. Não disse nada até que Helmut tivesse terminado de cortar seus cabelos. Livrando-se dos fios que haviam caído em si, retirou a capa de corte enquanto o barbeiro pegou uma toalha quem quente na estufa dentro da salinha.

- E o que você acha que deveria ser feito, então?

O barbeiro voltou para junto de seu cliente com a toalha e ajeitou-a em torno do rosto dele. O tecido quente ajudava a barba a amaciar-se, facilitando o trabalho. E a pele ficava bem macia também. Começou a afiar a navalha quando limpou a garganta para responder a ele.

- Nós tínhamos uma indústria bélica poderosa sob o comando do Kaiser. Nossa metalurgia era a melhor de toda a Europa, até ouso dizer que do mundo inteiro! Mas o pacto de rendição nos tirou isso completamente. E, desde lá, vivemos tempos sombrios. Muitos acham uma temeridade retomar esses projetos, mas eu apóio que isso seja feito. Toda nação deve ter sua soberania assegurada, e não estamos tendo direito a isso. Então, ao diabo com o pacto.

Passou a navalha, já afiada, em uma tira de couro. Depois, preparou a espuma para barbear o homem na cadeira. Aliás, ele não havia se pronunciado. Raramente retrucava alguma coisa. Era um ouvinte plácido e paciente, apesar da selvageria encerrada em seus pequenos olhos azuis. Era um espírito intenso, vigoroso, e disso Helmut tivera certeza desde o primeiro instante em que o vira, dez anos antes. Retirou a toalha de seu rosto, colocando-a num gancho da parede, e começou a espalhar a espuma de barbear pelo rosto do grande homenzinho.

- Outra coisa que me incomoda é o estado generalizado de confusão política. Todos ficam disputando por um pedaço do bolo, mas não veem que é um bolo irrisório, pequenino, minguado para tantas bocas famintas. E a nação tem fome, meu senhor. A nação tem fome de um governo forte, que consiga unificar todas as correntes em prol do que realmente vale a pena: o progresso. O progresso geral. Nós somos diminutos perto da nossa grande nação. Temos que servir a ela, e não o oposto.

Com habilidade, começou a passar a navalha pela pele do pescoço do cliente, raspando com facilidade os fios ligeiramente esparsos. Ele continuava em silêncio. Parecia pensar. Helmut calou-se, então. Quando quase havia terminado de barbear o pescoço e a parte de baixo do queixo do homem, ele se pronunciou:

- Acha que eu seria capaz disso?

Aquela pergunta fez o barbeiro endireitar sua postura e encarar de frente o homem sentado em sua cadeira. Era mais velho do que seu cliente um par de décadas. Sorriu de lado.

- Conheci muitos homens durante os anos em que fui barbeiro, meu senhor. Graças a Deus, hoje sou um profissional requisitado pelos grandes homens da nação, sejam eles grandes merecida ou desmerecidamente. E em nenhum deles vejo o poder de fazer isso. Entretanto, eu o vejo no senhor. O senhor possui o pulso firme necessário para levar-nos ao caminho da glória. Disso eu não duvido. Mas é necessário ter temperança e discernimento, veja bem. Os fins às vezes justificam os meios, mas essa lógica é como um cão covarde: no momento em que lhe damos as costas, ele irá morder nosso calcanhar.

O homenzinho sorriu, parecendo gostar das coisas que ouvia. Helmut também sorriu, e logo voltou a se curvar sobre seu cliente. Com habilidade, terminou de barbear seu rosto, mantendo, como sempre, somente o bigodinho que tinha sob o nariz. Limpou a espuma de seu rosto e aplicou um pouco de loção pós-barba em seu rosto branco. Tendo terminado o serviço, ajeitou a cadeira e afastou-se. Observou o homem mirando-se no espelho, ajeitando no corpo a farda, penteando os cabelos e retirando alguns fios de cabelo cortado negligenciados antes. Voltou-se para o barbeiro e, tirando um bolo de notas do bolso – a hiperinflação lançara à lua os preços de tudo –, entregou a Helmut os marcos pelo serviço. Sorriu de lado.

- Você poderia ser meu conselheiro.

O barbeiro riu gostosamente daquela insinuação do baixinho, balançando negativamente a cabeça. O gesto não fora mal visto pelo outro. Já se conheciam por muito tempo. A intimidade entre eles era a de amigos de longa data.

- Agradeço a oferta, meu senhor, mas eu não passo de um humilde barbeiro. Deus deu a mim habilidades com navalhas e tesouras, e, no máximo, um pouco de perspicácia para que eu sobrevivesse nesse mundo maluco. Tenho tudo o que quero: uma esposa linda, filhos crescidos e obedientes, uma casa minha e muitas histórias para contar. A política é para homens como o senhor.

Saíram juntos daquela saleta. A sede do partido era um prédio grande no centro de Berlim. Chegando à porta de saída, Helmut virou-se e cumprimentou o homenzinho com vigor.

- Obrigado por seu serviço e pela conversa, Helmut. Mande lembranças à família.

- Eu é que lhe agradeço, meu senhor – murmurou o barbeiro, humilde. Girou nos calcanhares, desceu a pequena escada e perdeu-se no movimento da rua sob o olhar atento de seu ilustre cliente.

- Eu o invejo, Helmut.

O sussurro atraiu a atenção de um dos seguranças do homenzinho, que se virou para ele. Balançou a cabeça, como que negando ter dito qualquer coisa. Olhou para o homem à sua direita.

- Mande preparar o carro. Há muito o que se fazer.

- Imediatamente, mein Führer.