A MENINA QUE SONHAVA (Reformulado)

Bem me lembro, era infância, tão suave quanto uma manhã fresca exalando cheiro de um novo dia misturado ao cheiro de café fresco à beira do fogão à lenha. Todos os dias eram assim, exceto os fins de semana. Ainda estava escuro. Ao som do cantar dos galos, o sol entre cochilos tentava entreabrir os olhos e a menina já estava desperta para o mundo que a chamava. Ela podia ouvir os seus gritos e os seguia, pois sentia ali não ser o seu lugar, apesar de suas raízes estarem fincadas àquele chão, adorar o contato com a natureza bruta e correr livre contra o vento feito pássaro. Sempre soubera que podia ir mais longe, que podia alcançar voos maiores em busca do seu futuro. Ele estava em seu aguardo com mãos estendidas, nelas continha a flor chamada esperança.

Limpando, com o dorso da mão, os restos da bolacha comum - misturados ao café, oferecido pela mãe, pegava as poucas ferramentas que dispunha - lápis e cadernos - que lhe serviriam de passaporte para o futuro, e seguia rumo à escola.

Sandálias de dedo, limpas, logo empoeiradas pelo barro vermelho da estrada que percorria, com seus passos de menina o percurso diário: uma légua até chegar ao seu destino. Mesmo sabendo que, de volta, enfrentaria a mesma distância ela não se sentia incomodada, apesar dos raios do sol quente queimar sua pele branca.

Aos seus olhos, a escola sempre se apresentou como um grande encantamento, um lugar mágico onde era possível se fazer grandes viagens através das leituras. Portanto, lugar de portas abertas para o mundo. Mundo este que povoava seus sonhos, pois acreditava ser bem mais colorido do que àquele em que ela vivia e via. Via e não compreendia. Via pessoas, fisicamente, tão parecidas e de comportamentos tão diferentes. Via tantos casebres em meio a casas ricas, bonitas. Via pessoas usando como transportes seus pés; outras, lombos de animais e, mais outras, em carros possantes. Este mundo lhe parecia tão desigual. Este não era o seu mundo, o que ela idealizava era bem diferente. Para isso sentia que muito haveria de lutar. Tinha certeza que o mundo poderia não mudar, mas a sua história de vida sim. Ah, isso sim!

Era na escola que ela esquecia a vida dura dos seus pais. Ele, agricultor que ao despontar do sol, após tomar uma simples xícara de café, seguia o caminho da roça. Ia derramar seu suor para sustentar a família, enquanto sua mãe cuidava de todos os afazeres domésticos. Sabia, por convicção e força de vontade não querer ter esse mesmo estilo de vida de seus pais, não por se envergonhar deles, mas por acreditar que a vida podia ser mais branda e gratificante.

Convicta, não se deixava abater diante das intempéries da vida, até mesmo quando, em diversas situações, foi tratada de maneira diferente. Porque, no fundo, sabia que era gente igual a todo mundo e, talvez, quem sabe, melhor do que alguns que se recusavam a mostrar seu lado humano.

Neste mundo esquisito em que vivia, as pessoas eram divididas em mandantes e obedientes. Porém, aquela menina, mesmo simples, sentia que seu pescoço fazia questão de manter sua cabeça erguida. Mesmo que, às vezes, ela se sentisse meio cabisbaixa.

Incontáveis foram as vezes que tentaram apagar seus sonhos. Tentativas em vão, nem chegaram a descolori-los. Ela havia pintado-os com cores fortes e vibrantes. Abraçava-os num aperto suave, mas bem seguro. E, em arroubos, fantasiava, alimentando-os. E, todas as suas noites, de menina do interior, iluminadas pela luz das lamparinas, que cotidianamente, se apagavam por volta das dezoito horas, já que, no sertão sem televisão - em sua época - dormia-se com as galinhas - muito cedo – em virtude do outro dia também começar mais cedo, quando os galos começavam a cantar. Quando a luz da lamparina apagava-se, dentro da menina acendia um clarão lunar, dando visibilidade aos seus sonhos. E como eles eram fartos e palpáveis! Sonhava, dormia, acordava para sua rotina.

Neste ínterim, a menina ia crescendo, tornando-se mocinha, percebendo a vida com mais clareza. Os livros se tornaram seus melhores amigos, lhes mostrando o mundo. Um mundo vasto em sabedoria. Foi quando percebeu que o fato das pessoas demonstrarem comportamentos diferentes, no quesito desrespeito aos outros, era fruto de uma palavra azeda: a ignorância. E pensava:

_ Ah, se todos soubessem que os humanos são iguais, independentes da condição social, raça, religião...

Diante dessas conclusões, ela procurou firmar-se mais em seus sonhos, acrescentando de vez um adeus ao mal da humanidade, a fruta azeda denominada ignorância. Tinha fome de saber, sede de conhecer sempre mais para não cometer os mesmos erros que os outros. E, nesta fome pelo saber, também descobriu que quanto mais aprendia muito pouco ainda sabia. Aprendeu, portanto, que: a vida é um poço que, quanto mais se cava, mais temos o que escavacar. Enfim, uma eterna escola.

E, a menina com poucas penas, e muitos sonhos em sua mala simples, bateu asas e voou. Era fim de um entardecer morno no sertão, céu em arrebol exuberante, quando a noite já dava sinais de sua chegada. No coração, sabia as lembranças carregar para a vida inteira, mas também, a certeza de levar consigo as chaves que lhes abririam as portas do futuro.

Feliz, percebeu que o futuro a esperava com um riso largo, aberto sobre a sua cabeça, incentivando-a a subir os degraus da vida. Como não sabia o que era temor, foi galgando-os um por um, sempre ultrapassando os percalços, as pedras no caminho. E foram tantas... Quantos tropeços, tombos e quedas! Entretanto, sua força interior sempre a fez levantar-se com as energias renovadas.

Hoje mulher, cresceu, conservando o seu espírito de menina - cheia de sonhos - que vê o mundo com muita clareza porque seu caminhar foi alicerçado pelos livros - seus melhores amigos -, e ainda vive rodeada deles e os trata com um carinho muito especial. Percebe feliz que sua luta incessante para um mundo mais justo e humano, continua. Mudar o mundo, não conseguiu, mas continua fazendo a sua parte. Agora, a sua história de vida, sim. Ela traçou seu próprio rumo. Tornou-se capaz de ver o mundo com seus próprios olhos.

Olhos radiantes que abrem suas pálpebras a cada sono da noite abrindo espaço para um dia imensamente azul. Como é azul o seu modo de ver a vida porque acredita em Deus, em si e nos outros. Sabe que, em essência, todo ser humano é bom, uma vez que foi criado à imagem e semelhança de Deus. O trilhar de seus passos no caminhar da vida é quem pode distorcer a sua personalidade.

Portanto, não condena, nem atira pedras, ou discrimina nenhum ser, por saber que as oportunidades de vida digna lhes foram roubadas. E isso muito a entristece, apesar de não tirar o brilho do seu olhar. Ainda acha estranho o que hoje vê, não compreende a capacidade do ser humano ser tão desumano com seus pares. Em nome da ganância esmaga a maioria da massa – o povão –, destrói o próprio mundo em que vive, recebe o retorno feroz da natureza, mas continua cego em busca do ter. Está sempre querendo mais.

Mesmo assim ela cultiva sua fé num futuro, mesmo que não tão próximo, que seus olhos não possam saborear, mas quem sabe, seus filhos e netos. E que eles possam fazer parte de um cenário onde todos possam desfilar na mesma passarela da vida, vendo, com o olhar da felicidade, as portas largas do mundo.

Fátima Feitosa
Enviado por Fátima Feitosa em 10/08/2009
Reeditado em 13/08/2009
Código do texto: T1746863
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.