MULHER FELIZ

Terezinha Pereira

Chove já faz alguns dias. A avó murmura a cada minuto. Corre com a roupa lavada para o quintal, corre com a roupa para a varanda. O mato que nasce em volta da casa está alto e verde. Agradece a generosidade da chuva, mas anseia por um passeio no sítio. Quer catar os matinhos que nascem na horta e começam a cobrir suas mudas de cenouras e beterrabas. De longe dá para ver a horta viçosa, em vários tons de verde, carinhosamente tratada pelas mãos daquela mulher forte, que fala com suas plantas, com suas galinhas, com suas coisas. Mora ela num sítio , a poucos quilômetros da cidade. Há alguns anos vive sozinha. Sua filha caçula casou-se já faz algum tempo, e, como os outros filhos, mudou-se para a cidade.

Olha o céu carregado. Com experiência de mulher de campo , murmura:

_Só pára na volta da lua. Faltam três dias.

Sentada na varanda, olha a roupa no varal, que teima em não secar. Não há nenhum vento.

" Esta varanda já tem trinta anos. Foi quando nasceu a Míriam que ela foi construída. Os outros três já estavam bem crescidinhos. O Mário tinha dez anos de idade, a Lúcia tinha oito e a Neide cinco. A Míriam nasceu numa época de chuva . Chovia como hoje . O João esperou passar a chuvarada para construir a varanda em volta da casa toda. Quatro crianças pequenas precisavam de espaço coberto para brincar quando estivesse chovendo. João gostava de ver os filhos sempre alegres. Naquela época, havia o casal de empregados que morava na casa da estrada. Tinham também três filhos. O João costumava reunir a criançada toda para brincar com elas e também para que participassem de pequenas tarefas : colher ovos, arrancar mato na horta, procurar galinha choca nos esconderijos. E como gostavam de encontrar, carregada de pintinhos, uma galinha que estava desaparecida! O João nos deixou cedo. Logo após o nascimento da Míriam. Picada de cobra."

A mulher ouve um barulho na cozinha e vai até lá.

_ Pensei que fosse o gato de novo. Como gosta de cheirar as panelas no fogão. Mas, foi a lenha que se acomodou .

Ajeita a lenha no fogão. Destampa a panela de feijão; prova um grão e coloca mais um pouco da água que ferve numa outra panela. Faz tudo com gestos firmes que não demonstram seus setenta e cinco anos de idade. Olha a pia com algumas vasilhas sujas. Olha o céu carregado de nuvens que atrapalham para saber a horas. Senta-se novamente na varanda. Aquela chuva toda deixa-a com o corpo mole e atiça-lhe as lembranças.

" As três crianças já estavam crescidinhas e acreditávamos que ficaríamos só com as três. Os filhos vinham sem nenhum planejamento, sem previsões. Naturalmente. Frutos de algumas brincadeiras debaixo das cobertas. Mas, quando chegavam, enchiam a casa de alegria. Eu achava bom ter apenas três filhos. Naquela época, ter poucos filhos, não era comum. Nossos parentes e amigos tinham oito, dez, doze ou mais filhos. Não possuíamos muita riqueza e gostaríamos de ver os filhos estudando na cidade. Quando a Míriam deu o primeiro sinal de sua vinda ao mundo, esta casa se encheu de felicidade. O João foi o primeiro a dar a notícia `as outras crianças. Quando ela nasceu, todos queriam participar dos cuidados para com a menina e com a mãe. Desde a lavação dos panos até a corrida atrás da galinha gorda para a canja. A Míriam nasceu miúda, cabeluda e com olhos muito pretos, bem espertos. Ao completar dois meses de vida, estava crescida e forte. Conhecia as pessoas da casa e espalhava sorrisos sempre que chegava um de nós perto do seu berço. Foi numa noite de lua cheia, que o João saiu para caçar tatu. Brincou com as crianças mais velhas após o jantar. Falaram sobre tatu. Era sempre uma festa quando o João chegava com um. Despediu-se da menina no berço, com a mesma ternura de sempre. Chegou até a cozinha onde eu estava arrumando as coisas da janta. Falou o até logo de sempre, acariciando-me com os olhos. Era assim que me dava carinho. E saiu com o empregado que morava na casa da estrada. Voltou umas duas horas depois, ofendido pela cascavel. O empregado ajeitou a charrete e foram rápido para a cidade, sem contar como havia ocorrido o acidente. Ficamos aflitos. As crianças já tinham capacidade de compreender a gravidade do ocorrido. Juntaram-se a mim e ficamos, toda a noite, em vigília. Os homens na cidade e nós aqui sem saber nada a respeito do João e sem poder ajudar em nada. A mulher do empregado juntou-se a nós com suas crianças. Rezamos muito. Só recebemos notícia do João na noite seguinte. Não havia resistido. Apesar da nossa pouca conversa, havia muito diálogo entre nós. Uma ligação muito forte. Não gosto de me lembrar dos primeiros dias que passamos sem ele. As crianças chorosas. Até a pequenina parecia sentir a falta do pai. Eu tentava chorar apenas à noite, quando todos dormiam, para amenizar um pouco o clima. Andava por esta varanda , como uma tonta. Olhava a horta onde o mato crescia à vontade. Via as galinhas soltas no quintal. Mal cuidava das crianças. Não encontrava coragem para trabalhar. Para olhar as coisas do João, o gado, a colheita. Acho que sentia uma raiva enorme de ele ter morrido. Tudo no sítio ia acontecendo à revelia. Quando completou três meses que o João havia ido, é que senti que eu não havia morrido junto com ele. Havia os quatro filhos para criar. Para comer. Para viver. Passei uma noite inteira num choro só. Levantei-me pela manhã, lavei o rosto na água morna da bacia. Passei um pente nos cabelos. Sentia-me desgrenhada. Olhei as crianças que ainda dormiam. A Míriam já havia mamado e dormia de novo. Fui até a casa da estrada e chamei o Inácio. Ele veio até aqui em casa . Fizemos um cálculo das provisões. Da comida que havia no celeiro. Do gado que havia no pasto, dos porcos, das galinhas. Somente naquele dia olhei de novo a horta, a qual já havia sido bem cuidada pelo Inácio. Quando as crianças se levantaram, olharam-me com um jeito de que haviam percebido alguma diferença no meu comportamento. Foram para a cozinha. Sozinhas, tomaram o café. O Mário foi ver a pequenina que se remexia no berço. Quando o Inácio saiu é que falaram comigo. Então, disse a eles que precisávamos programar a nossa vida. Que não tínhamos mais o pai. Mas que éramos cinco. Cinco pessoas saudáveis... E a vida continuou. Só Deus sabe a falta que o João nos fez. Só Deus sabe o tamanho do vazio que ficou dentro de mim. Um vazio que existe até hoje. Os meninos continuaram colhendo ovos no mato, achando galinha choca perdida e bezerro agarrado no cipó; arrancando matinho da horta; lavando louça no rego; carregando água para encher as bilhas e latões. Iam à escola também. Perto da casa da estrada havia uma escola. Uma professora vinha duas vezes por semana e juntava todas as crianças numa sala e ensinava a ler , a escrever, a fazer contas. A horta foi ficando viçosa. As plantações proporcionavam boas colheitas. Os animais também produziam boa renda. A vida tomou um bom rumo. Um rumo ,talvez, diferente daquele para o qual o João nos guiava. Mas, continuamos sendo uma família alegre e unida."

A avó continua olhando a chuva. Continua remexendo em suas lembranças. Dá uma olhada para o quintal ao ouvir o piado de um pintinho. Cobre a cabeça com um pano e corre até lá para socorrer o aflito. Aproveita e passa na cozinha. Tira o feijão do fogo. Ajeita as achas no fogão. Volta de novo para a varanda. Aquela chuva toda dá-lhe uma vontade danada de pensar no passado, nos filhos, nos netos.

" O tempo passou rápido. Vez por outra um defluxo, um arranhão, uma estrepada no pé, uma picada de inseto. Catapora, coqueluche, sarampo também sofreram. O Mário fez quinze anos e partiu para a cidade. Queria continuar os estudos. Algum tempo depois, saíram a Lúcia e a Neide. Estudaram. Formaram-se. Casaram-se. Nasceram os netos. A Míriam ficou mais tempo morando no sítio. Já havia uma linha regular de ônibus para a cidade que passava perto daqui. Ela freqüentou o colégio sem precisar de se mudar daqui. Hoje, este tempo chuvoso me faz pensar que estou sozinha. Que tive um marido, um homem bom, alegre e companheiro. Que tenho quatro filhos , pessoas independentes, satisfeitas, de bem com a vida. Que estou viva. Que moro nesta casa com uma varanda ao redor, que me permite ver a chuva cair, sentindo um cheiro gostoso que vem das plantações e do mato. Sem fazer nada, às vezes, a não ser deixar a vida acontecer; fluir. Torcendo para que a roupa seque rapidamente, para não ficar com cheiro de mofo. Não mais como na época das crianças pequenas, que precisava secar as roupas no calor do fogão porque era pouca e fazia falta."

A avó se levanta e começa de novo a falar sozinha. E a pensar na volta de lua dali a três dias, quando a chuva deverá passar.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 17/05/2005
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