DOS CONTOS DO VILAREJO-A Monarquia dos "Domingos"

À meia-noite o sino da Matriz do Vilarejo começou a tocar ininterruptamente. A igreja estava trancada por fora e toda a população se contraía ao seu redor procurando as causas que levaram o badalo a tocar sozinho e à espera de que alguém abrisse a porta e desvendasse o mistério.

À chegada do padre João, dialogou “Domingos”, o prefeito:

-“seu padre, o que é que está acontecendo por aqui? quem é o doido que tá batendo este sino a esta hora da noite?”

- Só pode ser a tentação do demônio, respondeu o padre.

- Abra logo esta porta, se eu pegar este cabra sem vergonha, mando dar uma “piza” nele, na frente de toda essa gente, pra ele saber que não se brinca com sono dos outros dessa maneira...!

A porta se abriu, as luzes acenderam... ninguém dentro da igreja... o sino batia sozinho! O espanto foi geral – os xingamentos de então se transformaram em “mea-culpa”! será um aviso? Será castigo de Deus? – Perguntaram alguns assustados!

- O que será isso, seu padre? - Perguntou o prefeito!

- É um prenúncio pelos pecados que o senhor comete contra a pobreza desta terra, seu prefeito: este povo morrendo de fome e o senhor explorando eles da maneira mais brutal que pode! - Isso é uma blasfêmia... eu não sou assim; nós dois pesamos na mesma balança: o senhor só pede- nunca dá. (Os dois travaram uma pequena discussão que valia mais como condenação) –te esconjuro satanás- disse o padre e foi subindo as escadarias que dão para o coro, em direção ao sino que não parava de tocar.

A população em peso saiu para ver a novidade; a igreja ficou lotada. O padre maldiçoou o demônio, inquiriu os santos e o poder de Deus. Convocou todos os fiéis para rezar uma missa; celebrou a missa, mas o sino continuou tocando, só foi parar lá quase de manhã, quando o povo já se dirigia para suas casas. Vieram curiosos de todas as partes: Jornalistas, repórteres, cordelistas, repentistas e romeiros. A notícia se espalhou tão rápido, que multidões diariamente, acorriam ao Vilarejo, com o intento de conhecer de perto, o sino que badalou sozinho durante

quatro horas seguidas. O Vilarejo tornou-se pequena para receber tantos visitantes.O comércio aumentou suas vendas, tão importantes se tornaram os eventos, que o povo mandou construir uma torre especialmente, para abrigar o sino milagroso, cortejado por milhares de romeiros.

Paralelamente, naquele instante, o Vilarejo era considerado um antro de perdição e corrupção; matava-se a sangue frio; roubava-se, assaltava-se, estuprava-se; prendia-se sem mais nem menos – a impunidade se alastrava nas mãos das autoridades que também se envolviam, impondo à população as suas leis. O delegado,o juiz, o promotor, o padre, o coletor e o prefeito faziam parte da família “Domingos” que mandava e desmandava no Vilarejo desde a sua criação.

O prefeito era dono de todas as terras, casas, açudes e até mesmo, dono das pessoas sob o seu jugo. Quando algum incoerente se metia no seu caminho, mandava elimina-lo pelos seus capangas, que também dominavam o Vilarejo.

Domingos já exercia o mandato de prefeito pela quinta vez: Num pleito elegia-se diretamente, no outro, um dos seus comparsas. Após a eleição, sentava-se no lugar do prefeito, obrigando-o a assinar os papéis e ainda o apelidava de “carimbador”.Todas as verbas eram desviadas para as suas contas particulares; comportava-se como um rei: exigia das pessoas que parassem e o cumprimentassem respeitosamente. Enganava os pobres; explorava sua miséria e atendia apenas, os pequenos pedidos dos eleitores, sempre alegando falta de dinheiro nos cofres da Prefeitura. Pesava sobre ele vários crimes e processos, os quais, rolavam nas varas públicas sem solução, tal era sua confiança na impunidade e no prestígio do partido. Quando se aproximava o dia do julgamento, o Juiz entrava de licença. Quando não era o juiz era o promotor que tinha problema. Os a-

nos passam, chega a outra eleição e tudo volta à estaca zero. Dos vinte e seis processos, cada juiz que entra derruba um bloco; tanto assim, que atualmente, restam apenas quatro dormindo nas varas criminais. A população já entrou num total caso de descrença, que quase nunca se ouve falar de alguém, que alimente esperança com respeito a isso. Quem quer que se diga seu adversário, viverá pouco.

No Vilarejo, não há um só, que não conheça os constantes extermínios do seu “Domingos”prefeito; apenas a polícia e a justiça ignoram estes atos de vandalismo que levam o medo a impor calma no Vilarejo. Domingos, externa na sua lista de inimigos, seus próprios parentes e até mesmo seus filhos. Quando necessita de se ausentar, nunca faz sem a proteção dos capangas que são também chamados por ele, de “anjos da guarda”.

Certa vez foi abordado por seu irmão Bertoldo, com o seguinte diálogo: - Domingos, você precisa mandar prender os matadores do nosso irmão Raimundo... afinal de contas é nosso irmão; tá morto e os bandidos andam soltos por aí! Há poucos dias tive notícia de um deles andando livremente pelas ruas de Cipoal, ao que lhe respondeu Domingos: - Meu irmão; já chega de confusão pro meu lado! ele não devia ter se metido com esse tipo de gente e muito menos com as irmãs deles. Vamos esquecer isso... fica melhor assim! Bertoldo não aceitou esse argumento como definitivo; procurou uns amigos em Cipoal; solicitou a presença de um advogado, abrindo mais um processo contra seu irmão, “Domingos”, por ter-se apoderado das propriedades de Raimundo, antes mesmo que este baixasse à sepultura; acusando-o também de ter mandado eliminar Zilá e

Zilca, que viviam às expensas de Raimundo e também por causa do Testamento deixado para elas. Domingos ao saber da postura de Bertoldo ameaçou-o: “É mais um que tenho que mandar pras profundezas do inferno... asquerento... imundo...!

Paulinho, estudante de Direito, no último ano, assumiu o encargo de condenar Domingos pelos crimes abordados por Bertoldo e foi por ele contratado. Paulinho, nascera em Vilarejo e estudava em Cipoal, de onde começava a articular o processo. Todo esse levantamento deveria ser feito em Vilarejo, para onde se dirigiu o advogado, que era muito querido da população por sua simpatia e esclarecimento, desejoso de num futuro próximo, influenciar a política e melhorar os costumes. Aí residia toda sua família, inclusive seus pais. O Coronel Domingos percebeu logo a encruzilhada em que se encontrava, caso tivesse prosseguimento esse desfecho. Foi aí que chamou Girau, um dos seus capangas e ordenou;

-“Hoje tenho um servicinho para você... o endiabrado desse tal de Paulinho, anda espalhando pela cidade que vai entrar com um processo na justiça contra mim: Eu quero que você resolva isto pra mim, ainda hoje!”

Já era tardinha, o claro do dia sumia, quando foi dada a ordem a Girau que respondeu: -“ Pode deixar! Vou reunir mais dois comigo; de hoje ele não passa! “

Paulinho, convidado para uma festa de aniversário, saiu tranqüilamente e descontraído. No meio do caminho foi atacado pelos três bandidos, que o obrigaram a entrar num carro, que pertencia a Domingos e desapareceram como rapaz, que jamais retornou à sua casa. Foi assassinado e o corpo, dado sumiço. Isto aconteceu poucos dias após as badaladas do sino. O desaparecimento de Paulinho provocou um mal-estar entre os moradores do Vilarejo e Cipoal, chamando a atenção das pessoas de bem com respeito ao comportamento neurótico de Domingos. Já era hora de acabar com isto ou ninguém sobreviveria ao jugo deste facínora – assim se expressavam as pessoas nas ruas e bares da cidade. Domingos tinha proteção dos Deputados e Senadores dependentes dos seus eleitores. Estes, somente no tempo de eleições, lembravam-se dos pobres destas paragens. Neste período faziam constantes visitas; alugavam um casarão e ali inauguravam uma maternidade. Distribuíam roupas, sapatos e dinheiro para as mulheres e crianças. Instalavam um motor de luz na Fazenda, iludiam aos pobres com suas promessas. Terminada a eleição, fechavam a maternidade e retiravam o motor de luz da Fazenda, deixando a população igualzinha, como era antes. A partir daí, todas as verbas destinadas ao Vilarejo, transformavam-se em propriedades particulares do Coronel Domingos, fosse ou não, prefeito – As notícias do desaparecimento de Paulinho, não paravam de sair nos jornais, mas a população cada vez mais se convencia, de que este seria mais um dos crimes sem solução, igual a tantos outros acontecidos na região. Sebastião, irmão de Paulinho, não dava trégua quanto ao julgamento de Domingos: Promovia passeatas e reuniões que estimulassem aos moradores de participarem. – É hora de todos se juntarem para acabar de vez com a força destes matadores e exploradores do povo! Se não for agora, nunca mais nos libertaremos; viveremos em escravidão por todas as nossas vidas, dizia: Que Paulinho seja o exemplo! Que o seu martírio nos mostre o caminho da libertação! Não tenhamos medo, assim como ele não teve e os enfrentou com desdenho, mesmo sabendo o fim que teria, entregando sua própria vida; mas esperamos que não a tenha perdido inutilmente. Veremos seus matadores na cadeia, pagando por todos os crimes cometidos, bem conhecidos de todos nós.

No mais esfuziante momento do seu discurso foi interpelado pelo Dr. Girão, primo de Domingos e juiz de Cipoal, que também atuava em Vilarejo: -"Sebastião vá para casa, as coisas já estão difíceis por aqui...você acaba complicando mais ainda! Vá meu filho... aceite meu conselho! deixe as autoridades cuidarem disso! As autoridades têm muita experiência para solucionar esses problemas com competência! você não pode ficar excitando o povo assim! a Lei considera isso, subversão contra a ordem pública; eu serei capaz de pedir reforço policial, para fazer cumprir a ordem!"

Os irmãos de Sebastião agiram com serenidade; aceitaram a fala do juiz como ameaça ou pressão, objetivando simplesmente, a coação e o medo. Uma comissão seguiu para Cipoal, intencionada de levar ao conhecimento das autoridades a renitente interferência do juiz, a toda hora, demonstrada publicamente, a favor da soltura de Domingos.

Girão, comprovadamente de ligação parentesca com o réu, ficou terminantemente proibido de atuar no caso. O Governador enviou um desembargador para acompanhar todos os detalhes do processo, com o máximo de segurança e lisura; em seguida providenciando a transferência do Dr. Girão para outra Comarca; simultaneamente,foi também providenciado, o deslocamento para o Vilarejo, do julgamento de Domingos e seus cúmplices, anteriormente, prefixado em Cipoal. Todas as autoridades cumpliciadas com o caso foram transferidas e outras demitidas, abrindo espaço livre para as ações da Justiça.

As investigações, antes a passo de ganso, agora prosseguiam aceleradas pelo Delegado e um grupo de comissários e investigadores, incluindo policiais fardados, observadores e jornalistas, sem a interferência dos políticos, à todo momento rechaçados pelo povo de Vilarejo. Seus moradores não pararam em momento algum, receosos de que o caso esfriasse ou caísse no ostracismo, como todos os outros acontecimentos anteriores e ainda por estar indiciado nos processos de Domingos, negou-se posse ao Presidente da Câmara nomeando-se um interventor para administrar a Prefeitura até ao final das investigações, para apurar as irregularidades constatadas pela Junta constituída. O Interventor dizia-se estarrecido, com o que a cada minuto descobria: Prefeitura endividada; funcionalismo atrasado e irregular, sem contrato ou efetivação no cargo. todos recebiam sem assinar qualquer documento. Não existia nada que comprovasse os gastos com obras sociais ou qualquer outro tipo de despesa com a população. As dívidas diziam respeito a vultosas importâncias pagas por obras que não foram realizadas no Vilarejo, porquanto, muitas encontradas nas propriedades particulares do Coronel Domingos, enquanto corrupção de grosso calibre foi detectada nos seus atos como prefeito.

Na missa pelo sexto mês da morte de Paulinho, assim se expressou o pe. João:-“ Meus irmãos: Deus escreve certo por linhas tortas! Deus tenha piedade de Domingos! que o seu sofrimento de agora apague seus pecados e alcance a vida eterna! Que Deus tenha pena de sua alma!” em seguida teceu alguns elogios ao morto, citou o Evangelho do “Sermão da Montanha”, distribuiu a Comunhão, abençoou os demais que enchiam a Igreja. Na Igreja comentava-se sobre as badaladas do sino: prenúncio de coisa ruim que explodiu com as causas que nortearam o seqüestro de Paulinho.

De posse das provas e dados para agilizar o julgamento, chegou a hora de convocar as testemunhas do seqüestro e morte de Paulinho. Uma semana após o ato religioso, bateu à porta de Ismael, o Oficial de Justiça, trazendo à mão uma convocação do seu comparecimento diante do juiz, como testemunho do seqüestro, enquanto, se conduzia também para a casa de Pedro Alexandre, segunda testemunha. Vencida uma semana, acontecéu o julgamento do coronel Domingos, às oito horas da noite; com a presença do Promotor Público, de três advogados do réu, do advogado da vítima, das testemunhas e do Corpo de Jurados, composto por senhores e senhoras da Comunidade Vilarejense, escolhidos pela postura de gente-bem, grau de honestidade e retidão. Convocadas as testemunhas, primeiramente depôs, Pedro Alexandre:-“ Eu estava na janela da minha casa, esquina com a rua Pedreira e rua do Norte, quando vi um carro vermelho parado numa touceira de marmeleiro; conheci o carro como sendo o de Girau e dentro, junto dele estava Perdigão, empregado do coronel Domingos. Senti que alguma coisa anormal estaria próximo a acontecer... na minha cabeça tudo confirmava isto, pois não tinha motivo pra eles ficarem ali, naquela hora em que todos estavam na festa. Sem muita demora, apontou Paulinho, vindo pela beira da rua, do lado do carro.

Quando eles viram Paulinho, esconderam-se no mato. Paulinho andava despreocupado nem pressentia o perigo. Os dois pularam em cima dele, agarraram e o empurraram para dentro do carro... aí apareceu o terceiro, que pude bem ver que era Osvaldo, apelidado “sem dedo”, que serviu de motorista. Imediatamente, com toda velocidade, o carro entrou na rua da minha casa, dobrando na rua Cosme, que dá para a fazenda do Coronel Domingos. é isto que eu tenho a dizer.” Inquirido pelos advogados do coronel, Pedro não disse mais nada que o contradissesse. Outra testemunha foi arrolada; trata-se de Ismael, que assim depôs: “Eu estou aqui, por um peso da minha consciência ! Vi tudo que fizeram com Paulinho; contei à minha mãe e não consegui dormir naquela noite! Aquela imagem presa na minha mente... me contorcia para todos os lados, como se alguém es-

tivesse me empurrando para eu contar o que aconteceu naquela noite. não suportando mais o pavor, contei pra minha mãe, que me aconselhou a contar tudo para o advogado de Paulinho.” Depois de escutar atento esta abertura, o juiz inquiriu a testemunha:-Senhor Ismael... o senhor jura dizer a verdade, somente a verdade, no que lhe for perguntado aqui?

- Juro.

-Então ponha a mão sobre a Bíblia e diga – juro!

-Juro – respondeu Ismael.

-Conte então o que sabe sobre a morte do senhor Francisco de Paulo Vermelho!..

-“ Eram quase oito horas da noite; eu tinha acabado de tanger o gado para o curral, tinha começado a trocar a roupa, saindo do banho. Não tinha ninguém por lá, naquela hora, senão eu. Os outros tinham ido para o Vilarejo, para a festa que tinha na Casa da Cidade.

Quando já estava quase indo, ouvi barulho de carro – eram os capangas do Coronel Domingos! Olhei bem e vi eles tirarem Paulinho do carro, descerem a ladeira que dá pro riacho da fazenda, amarraram ele no tronco da árvore grande- um oitizeiro- e bateram nele com um pau até matar. Só ouvi poucos gritos de morte, logo depois chegou seu Domimgos na sua caminhonete, trouxe mais dois homens, mandou abrir um buraco...( eu não pude reconhecer a voz dos dois homens; só pude reconhecer a voz de Girau, Perdigão e Osvaldo- o “sem dedo”. Mesmo não tendo certeza, acho que a voz era de Bernardo, filho mais velho do coronel Domingos. Eles ajudaram a cavar, desceram o corpo da arvore, enterraram, bateram o chão e cobriram com galhos de mato.”

- você não ouvia nada do que eles falavam?

- Não senhor. Os capangas tiraram ele do carro, foram levando rápido; só ouvi ele pedir para ser solto; eles diziam nomes feios e batiam nele, ( Nesse momento Domingos teve um desmaio, por alguns instantes o julgamento foi suspenso, até que tudo voltasse ao normal).

-Ao retomar a sessão, o Promotor pediu a condenação do réu por esse crime, uma vez que ainda se submeteria a julgamento por outros processos. Os Jurados se reuniram e por unanimidade, condenaram Domingos, que pegou quinze anos de prisão. Também foram

condenados: girão, Perdigão e Osvaldo, a vinte anos; Bernardo, filho de Domingos a oito anos e valmor, primo de Domingos, também a oito anos.

O Coronel domingos foi ainda julgado em mais de vinte processos; pegando mais de cem anos de cadeia em Cipoal, para onde foi transferido logo após o julgamento.

Depois de tantos anos de sofrimento, Vilarejo voltou a ter paz! Renascendo uma nova vida, encerrando assim, “A MONARQUIA DOS DOMINGOS”

Zecar
Enviado por Zecar em 17/05/2005
Reeditado em 05/08/2007
Código do texto: T17430