Breve conto sobre a amizade e outros temas

Há valores que nascem conosco e outros que conquistamos ao longo da vida, seja em duras batalhas contra os maus hábitos, seja por observar um gesto nobre que nos comova a sensibilidade de tal maneira que seja impossível, dali em diante, viver do mesmo jeito.

Eu tinha na adolescência um grupo de sinceros amigos, embora a inexperiência e rebeldia da idade nos inflamasse vez ou outra. Não era raro nem frequente, mas acontecia de uns se afastarem temporariamente, com ou sem razão, para depois voltar.

Costumávamos nos reunir para sessões de cinema em casa e como o grupo era grande, nem sempre todos estavam presentes. Certa vez, em dia que Carla não foi, havia em uma das personagens do filme uma característica negativa partilhada pela amiga ausente e foi Lucas, impulsivo, que apontou a semelhança. Acontece que acabou aumentando o tamanho do defeito, dedicando-lhe palavras duras e mais tempo de oratória do que a sensatez permitiria. Como ninguém incentivasse seu descuido, logo surgiram outros assuntos.

Não havia entre nós quem achasse necessário contar à amiga o que ocorreu, pois nas semanas seguintes ficou visível que tudo não passara de um descontrole. A situação estaria resolvida, não fosse o fato de ter chegado aos ouvidos de Carla. Até hoje desconheço como e julgo irrelevante tentar descobri-lo.

Nesse dia nos encontramos, sem ausentes, para outra sessão cinematográfica. Perturbada, talvez pelo pouco tempo que teve para refletir a respeito de tudo, a amiga encontrou um meio de disparar a sutil indireta, no momento em que todos jantavam na sala:

- Sei bem que minha pessoa desperta tanto profundas admirações quanto as mais ácidas críticas. Quantos já não me disseram mal pelas costas e qual não foi minha decepção ao descobri-lo.

Lucas não permitiu que o ambiente ficasse silencioso:

- Eu já cometi esse erro. Desde então, tenho lhe oferecido o melhor da minha amizade como forma de saldar essa dívida moral. É a oportunidade que tenho de me redimir. Se você me negar essa oportunidade, só restará fazer o bem a outra pessoa e evitar, com meus conselhos, que outros repitam meu erro.

Os dois se fitaram por alguns segundos, longos como décadas, até que ela o cumprimentou com um afetuoso aperto de mão.

- É das pessoas de maior valor que já conheci. Sua amizade me honra.

Desde que presenciei essa conversa, foi-me impossível continuar vivendo do mesmo jeito.