TEMPO
Tocou a campainha pela terceira vez. Já estava de volta à calçada quando ouviu sua voz:
- Espera! Vou abrir a porta.
Camila tirou os óculos escuros e olhou para a casa amarela tão conhecida. Não saberia dizer quantas vezes refugiou-se ali. Em uma noite fria, no último outono, confessou ao amigo que bastava imaginar-se naquele lugar para tudo parecer mais leve.
Desde então, Gustavo, em tom de brincadeira, se referia à casa como asilo político.
Reservada, embora parecesse extrovertida demais à primeira vista, sua timidez era visível a olho nu apenas para os mais atentos. Camila costumava se definir com duas personalidades. Uma para consumo externo: superficial e falante. E quanto mais conversava menos seu interlocutor poderia dizer que a conhecia. A outra face era entremeada de silêncios que falavam por ela.
Naquela tarde, Gustavo disse:
- Queria ter teu tempo. Se tivesse, faria tantas coisas que deixo suspensas porque não arrumo um segundo a mais em meu dia.
Ela não respondeu de imediato. Pensava no motivo que a trouxera ali. Muitas vezes não sentia pressa ou necessidade de falar quando estava em sua companhia. Sem ponto, nem vírgula ou silenciosa, era ela todo o tempo.
Gustavo levantou-se para trazer o café. Permaneceu calada e seu silêncio parecia fazer parte da sala decorada com móveis rústicos. Um pouco de si mesma surgia em cada canto daquele ambiente que ajudou a arrumar e continuaria decorado pela sua memória. Em cima da mesa, ao lado do sofá, um porta-retrato com a foto deles em uma viagem a São Paulo. A lembrança emoldurada do início.
Camila pegou a xícara oferecida pelo amigo e sorriu ao falar:
- Você quer abraçar o mundo. Fazer tudo. Eu raramente me entrego. Enquanto você diz não se entregar mais por falta de tempo.
- Pode ser, mas não desejo mudar o mundo, nem patrocinar mudanças na história de ninguém.
- E o que mereceria teu desejo? – Camila olhava o retrato deles ao ouvir a resposta do amigo.
- Nem sempre a gente escolhe o que desejar. Por mais estranho que isso seja.
Gustavo sabia que a amiga detestava aquele tipo de resposta, mas divertia-se ao provocá-la. Camila fingiu não perceber a provocação e perguntou em tom maroto:
- E o que você quer, muda com o tempo?
A resposta pareceu simples quando o amigo disse:
- Tudo muda com ele.
Camila bebia a segunda xícara de café e ele poderia adivinhar o que ela pensava. Para sua amiga havia sempre um ângulo a mais, uma possibilidade a ser levantada. Ele não se conteve e riu quando ela disse:
- Como você consegue capturar o tempo numa definição? Nada pode ser mais relativo. Veja nosso caso. Nossas conversas sempre pareceram passar tão rápidas. O tempo voa.
- Será que voa mesmo? Muitas vezes se arrasta.
- Não é possível! Aquele filme francês de novo? Juro que me disseram que era ótimo!
- Perfeito para filosofar sobre o tempo... Perdido.
Camila ria. O tédio daquela tarde no cinema ainda era visível na expressão irônica de Gustavo. E ela ouviu a mesma frase de sempre:
- Você não existe.
- Há quanto tempo escuto isso, meu Deus?
- Nunca fui bom com datas. Isto é com você. Acho que foi em 1998.
Camila balançou a cabeça discordando. E ele arriscou:
- 1996? Sei lá! Faz tanto tempo!
- 1997. 1º de setembro. Estávamos naquele congresso de arquitetura e urbanismo em São Paulo. Você, como bom mineiro, ficou calado, mas atento a tudo. Eu, sempre mais extrovertida socialmente, conversei com um homem engraçado que estava sentado ao teu lado e de repente, olhei para você e sorri.
- Não me lembro disso.
- Você parecia tão sério e sozinho.
Gustavo a olhou com ar curioso e concluiu:
- Por isso você se aproximou com aquela conversa simpática! Achou que eu era um homem solitário, um coitadinho! – ele falava entre injuriado e divertido.
Camila tocou o ombro do amigo e deixou sua mão ali, descansada, enquanto respondia com cinismo:
- Enfim, você entendeu!
A risada dos dois parecia agora completar a sala. E Camila achou que era tempo de contar o motivo que a trouxera ali:
- Fui aceita no curso de pintura. Volto para Roma!
Não estava mais segura em seu refúgio. Aquele sentimento tardio e ao mesmo tempo, desastrado, a paixão fora de hora pelo amigo, lembrava um objeto deslocado dentro do ambiente impecável.
Camila voltou a falar com certa ansiedade conhecida de Gustavo:
- Viajo na próxima semana.
O amigo a abraçou e ela não se conteve:
- Não precisa ficar tão contente! Um dia, volto.
- Estou contente por você.
E no olhar de cada um, o que nunca seria pronunciado entre eles.
(*) Imagem: Google
http://www.dolcevita.prosaeverso.net
Tocou a campainha pela terceira vez. Já estava de volta à calçada quando ouviu sua voz:
- Espera! Vou abrir a porta.
Camila tirou os óculos escuros e olhou para a casa amarela tão conhecida. Não saberia dizer quantas vezes refugiou-se ali. Em uma noite fria, no último outono, confessou ao amigo que bastava imaginar-se naquele lugar para tudo parecer mais leve.
Desde então, Gustavo, em tom de brincadeira, se referia à casa como asilo político.
Reservada, embora parecesse extrovertida demais à primeira vista, sua timidez era visível a olho nu apenas para os mais atentos. Camila costumava se definir com duas personalidades. Uma para consumo externo: superficial e falante. E quanto mais conversava menos seu interlocutor poderia dizer que a conhecia. A outra face era entremeada de silêncios que falavam por ela.
Naquela tarde, Gustavo disse:
- Queria ter teu tempo. Se tivesse, faria tantas coisas que deixo suspensas porque não arrumo um segundo a mais em meu dia.
Ela não respondeu de imediato. Pensava no motivo que a trouxera ali. Muitas vezes não sentia pressa ou necessidade de falar quando estava em sua companhia. Sem ponto, nem vírgula ou silenciosa, era ela todo o tempo.
Gustavo levantou-se para trazer o café. Permaneceu calada e seu silêncio parecia fazer parte da sala decorada com móveis rústicos. Um pouco de si mesma surgia em cada canto daquele ambiente que ajudou a arrumar e continuaria decorado pela sua memória. Em cima da mesa, ao lado do sofá, um porta-retrato com a foto deles em uma viagem a São Paulo. A lembrança emoldurada do início.
Camila pegou a xícara oferecida pelo amigo e sorriu ao falar:
- Você quer abraçar o mundo. Fazer tudo. Eu raramente me entrego. Enquanto você diz não se entregar mais por falta de tempo.
- Pode ser, mas não desejo mudar o mundo, nem patrocinar mudanças na história de ninguém.
- E o que mereceria teu desejo? – Camila olhava o retrato deles ao ouvir a resposta do amigo.
- Nem sempre a gente escolhe o que desejar. Por mais estranho que isso seja.
Gustavo sabia que a amiga detestava aquele tipo de resposta, mas divertia-se ao provocá-la. Camila fingiu não perceber a provocação e perguntou em tom maroto:
- E o que você quer, muda com o tempo?
A resposta pareceu simples quando o amigo disse:
- Tudo muda com ele.
Camila bebia a segunda xícara de café e ele poderia adivinhar o que ela pensava. Para sua amiga havia sempre um ângulo a mais, uma possibilidade a ser levantada. Ele não se conteve e riu quando ela disse:
- Como você consegue capturar o tempo numa definição? Nada pode ser mais relativo. Veja nosso caso. Nossas conversas sempre pareceram passar tão rápidas. O tempo voa.
- Será que voa mesmo? Muitas vezes se arrasta.
- Não é possível! Aquele filme francês de novo? Juro que me disseram que era ótimo!
- Perfeito para filosofar sobre o tempo... Perdido.
Camila ria. O tédio daquela tarde no cinema ainda era visível na expressão irônica de Gustavo. E ela ouviu a mesma frase de sempre:
- Você não existe.
- Há quanto tempo escuto isso, meu Deus?
- Nunca fui bom com datas. Isto é com você. Acho que foi em 1998.
Camila balançou a cabeça discordando. E ele arriscou:
- 1996? Sei lá! Faz tanto tempo!
- 1997. 1º de setembro. Estávamos naquele congresso de arquitetura e urbanismo em São Paulo. Você, como bom mineiro, ficou calado, mas atento a tudo. Eu, sempre mais extrovertida socialmente, conversei com um homem engraçado que estava sentado ao teu lado e de repente, olhei para você e sorri.
- Não me lembro disso.
- Você parecia tão sério e sozinho.
Gustavo a olhou com ar curioso e concluiu:
- Por isso você se aproximou com aquela conversa simpática! Achou que eu era um homem solitário, um coitadinho! – ele falava entre injuriado e divertido.
Camila tocou o ombro do amigo e deixou sua mão ali, descansada, enquanto respondia com cinismo:
- Enfim, você entendeu!
A risada dos dois parecia agora completar a sala. E Camila achou que era tempo de contar o motivo que a trouxera ali:
- Fui aceita no curso de pintura. Volto para Roma!
Não estava mais segura em seu refúgio. Aquele sentimento tardio e ao mesmo tempo, desastrado, a paixão fora de hora pelo amigo, lembrava um objeto deslocado dentro do ambiente impecável.
Camila voltou a falar com certa ansiedade conhecida de Gustavo:
- Viajo na próxima semana.
O amigo a abraçou e ela não se conteve:
- Não precisa ficar tão contente! Um dia, volto.
- Estou contente por você.
E no olhar de cada um, o que nunca seria pronunciado entre eles.
(*) Imagem: Google
http://www.dolcevita.prosaeverso.net