A ENTREVISTA
A entrevista estava encerrada. Alice esboçou o desejo de se levantar enquanto a mão da mulher das perguntas intermináveis a segurava gentilmente pelo braço:
- Gostaria de conversar um pouco mais sobre o romance. Sinto uma solidão imensa quando a leio, como se tudo fosse inatingível, pesado e difícil, mas este romance, em especial, me intriga.
A escritora resolveu atendê-la, provavelmente por sua honestidade:
- O que exatamente você não entende em "Paixão Falada"?
A resposta veio rápida: - Tudo.
Em outros tempos, teria simplesmente pedido que relesse o livro, mas a sinceridade da entrevistadora desarmava as pessoas. A escritora, então, sorriu.
Beatriz retribuiu o sorriso enquanto pensava que aquela mulher parecia ainda mais hermética que os textos. Teve vontade de dizer que às vezes se entediava com seus livros, mas apenas respirou fundo antes de questioná-la:
- Então, por que "Paixão Falada"?
Alice sabia que teria sido muito mais simples calar. Escrever era, a maior parte do tempo, um problema que ela havia criado para si própria. Odiava explicar. Recorrer às explicações inutilizava o sentido literário. O que queria dizer estava escrito. Ao falar da sua obra, algo se perdia de maneira irreversível. Mas a moça parecia verdadeiramente interessada em respostas. Alice deveria admitir que não as tinha, no entanto respondeu de uma forma quase pedagógica:
- Creio que a voz é o primeiro sinal do amor. Quando o bebê nasce, ainda não pode enxergar o mundo com definição. As pessoas são vultos e as coisas, imagens fora de foco. Mas a voz pode ser ouvida exatamente como é. E por isso, penso que somos mais vulneráveis ao que escutamos, pois nos remete à época em que éramos extremamente frágeis e dependentes.
- Você quer dizer que ouvir é mais intenso do que ver?
- Ouvir é uma forma de ver.
Beatriz ouvia atenta. Uma atenção que beirava o nervosismo. Algo dentro dela exigia que ficasse alerta. Talvez, mais uma pergunta a aproximasse da compreensão:
- A personagem em seu livro se apaixona por um homem antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Uma mulher seduzida por uma voz e, principalmente, por tudo que esta voz diz a ela. A protagonista liga-se a ele porque sua voz a fez lembrar de algo familiar?
- Esta questão deveria ser respondida por algum psicanalista. Sou uma escritora. E creio que haverá sempre um mistério, algo intocado. Por mais que você e eu desejemos entender, na paixão existe uma área secreta, um lugar inacessível para o intelecto. Não há inteligência capaz de traduzir o que está ali guardado. Só os sentidos contam quando se está apaixonado. E geralmente, os sentidos não fazem sentido. Estão além dele.
Àquela altura, Beatriz desejou ser qualquer outra coisa no mundo. Entrevistar as pessoas, ultimamente, tinha algo de desolador. Há quanto tempo não saía alegre ou satisfeita de uma entrevista? Teria mesmo vocação para isto? O que fazia ela ali agora? Aquela mulher tinha coisas tão importantes assim para dizer? Aquela mulher! A voz da escritora trouxe-a de volta:
- Está satisfeita? Podemos encerrar?
Beatriz corou:
- Espero que me perdoe.
- Continue.
A repórter a olhava agora, de fato, agradecida. Por um momento, uma espécie de simpatia pela escritora ajudou a reorganizar o pensamento:
- Sua protagonista parece se sentir incapaz diante do homem que ama. Esta incapacidade é algo dela ou você acredita que nas paixões estamos sob o domínio do desejo e não haveria outra saída?
- Eu não sei. Você sabe? Se souber, não conte a ninguém. Provavelmente valerá apenas para você, assim como uma possível resposta só teria razão de ser para mim mesma.
- Esta é uma maneira muito sutil de fugir à questão.
Alice sorria e desta vez, quase riu. Era engraçado ver aquela repórter e suas tentativas de capturá-la com as armadilhas em forma de pergunta.
- Beatriz, você quer entender a mim ou ao meu romance?
- Em qual das opções eu teria mais sorte?
Alice estava quase contente ao responder:
- Eu sou o que escrevo. Mas o que escrevo não sou eu. Se você puder entender isto, talvez fique mais claro.
Beatriz observava cada detalhe da expressão daquele rosto como quem deseja desvendar um enigma. Naquele momento era como a esfinge pedindo que a decifrasse ou ela seria devorada pela ausência do sentido. Precisava de coragem para uma última questão e perguntou:
- Você já o esqueceu?
Alice parecia impassível, quase à espera daquela pergunta, como se a repórter finalmente tivesse falado a única coisa que valia a pena ser dita. Por um breve instante a escritora permaneceu calada e em seguida, levantou-se e disse:
- Encerramos aqui. Obrigada.
A voz de Beatriz soou como um pedido: - qual a resposta?
E, desta vez, Alice falou sem sorrir:
- Leia o livro.
(*) IMAGEM: Google
http://www.dolcevita.prosaeverso.net
A entrevista estava encerrada. Alice esboçou o desejo de se levantar enquanto a mão da mulher das perguntas intermináveis a segurava gentilmente pelo braço:
- Gostaria de conversar um pouco mais sobre o romance. Sinto uma solidão imensa quando a leio, como se tudo fosse inatingível, pesado e difícil, mas este romance, em especial, me intriga.
A escritora resolveu atendê-la, provavelmente por sua honestidade:
- O que exatamente você não entende em "Paixão Falada"?
A resposta veio rápida: - Tudo.
Em outros tempos, teria simplesmente pedido que relesse o livro, mas a sinceridade da entrevistadora desarmava as pessoas. A escritora, então, sorriu.
Beatriz retribuiu o sorriso enquanto pensava que aquela mulher parecia ainda mais hermética que os textos. Teve vontade de dizer que às vezes se entediava com seus livros, mas apenas respirou fundo antes de questioná-la:
- Então, por que "Paixão Falada"?
Alice sabia que teria sido muito mais simples calar. Escrever era, a maior parte do tempo, um problema que ela havia criado para si própria. Odiava explicar. Recorrer às explicações inutilizava o sentido literário. O que queria dizer estava escrito. Ao falar da sua obra, algo se perdia de maneira irreversível. Mas a moça parecia verdadeiramente interessada em respostas. Alice deveria admitir que não as tinha, no entanto respondeu de uma forma quase pedagógica:
- Creio que a voz é o primeiro sinal do amor. Quando o bebê nasce, ainda não pode enxergar o mundo com definição. As pessoas são vultos e as coisas, imagens fora de foco. Mas a voz pode ser ouvida exatamente como é. E por isso, penso que somos mais vulneráveis ao que escutamos, pois nos remete à época em que éramos extremamente frágeis e dependentes.
- Você quer dizer que ouvir é mais intenso do que ver?
- Ouvir é uma forma de ver.
Beatriz ouvia atenta. Uma atenção que beirava o nervosismo. Algo dentro dela exigia que ficasse alerta. Talvez, mais uma pergunta a aproximasse da compreensão:
- A personagem em seu livro se apaixona por um homem antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Uma mulher seduzida por uma voz e, principalmente, por tudo que esta voz diz a ela. A protagonista liga-se a ele porque sua voz a fez lembrar de algo familiar?
- Esta questão deveria ser respondida por algum psicanalista. Sou uma escritora. E creio que haverá sempre um mistério, algo intocado. Por mais que você e eu desejemos entender, na paixão existe uma área secreta, um lugar inacessível para o intelecto. Não há inteligência capaz de traduzir o que está ali guardado. Só os sentidos contam quando se está apaixonado. E geralmente, os sentidos não fazem sentido. Estão além dele.
Àquela altura, Beatriz desejou ser qualquer outra coisa no mundo. Entrevistar as pessoas, ultimamente, tinha algo de desolador. Há quanto tempo não saía alegre ou satisfeita de uma entrevista? Teria mesmo vocação para isto? O que fazia ela ali agora? Aquela mulher tinha coisas tão importantes assim para dizer? Aquela mulher! A voz da escritora trouxe-a de volta:
- Está satisfeita? Podemos encerrar?
Beatriz corou:
- Espero que me perdoe.
- Continue.
A repórter a olhava agora, de fato, agradecida. Por um momento, uma espécie de simpatia pela escritora ajudou a reorganizar o pensamento:
- Sua protagonista parece se sentir incapaz diante do homem que ama. Esta incapacidade é algo dela ou você acredita que nas paixões estamos sob o domínio do desejo e não haveria outra saída?
- Eu não sei. Você sabe? Se souber, não conte a ninguém. Provavelmente valerá apenas para você, assim como uma possível resposta só teria razão de ser para mim mesma.
- Esta é uma maneira muito sutil de fugir à questão.
Alice sorria e desta vez, quase riu. Era engraçado ver aquela repórter e suas tentativas de capturá-la com as armadilhas em forma de pergunta.
- Beatriz, você quer entender a mim ou ao meu romance?
- Em qual das opções eu teria mais sorte?
Alice estava quase contente ao responder:
- Eu sou o que escrevo. Mas o que escrevo não sou eu. Se você puder entender isto, talvez fique mais claro.
Beatriz observava cada detalhe da expressão daquele rosto como quem deseja desvendar um enigma. Naquele momento era como a esfinge pedindo que a decifrasse ou ela seria devorada pela ausência do sentido. Precisava de coragem para uma última questão e perguntou:
- Você já o esqueceu?
Alice parecia impassível, quase à espera daquela pergunta, como se a repórter finalmente tivesse falado a única coisa que valia a pena ser dita. Por um breve instante a escritora permaneceu calada e em seguida, levantou-se e disse:
- Encerramos aqui. Obrigada.
A voz de Beatriz soou como um pedido: - qual a resposta?
E, desta vez, Alice falou sem sorrir:
- Leia o livro.
(*) IMAGEM: Google
http://www.dolcevita.prosaeverso.net