UM SER INDOMÁVEL

Fiz daquela obrigação diária, um prazer enorme. Todas as tardes, eu calçava as botas de borracha de meu pai. Meus pés de tão pequenos mal paravam dentro delas. Colocava o seu chapéu de palha, também enorme e de abas largas e esfarrapadas. Visual não muito admirável... Sentia-me, contudo, uma cowgirl desses filmes americanos. No olhar, algo de romântico misturado a uma rebeldia quase indomável.

Montava o cavalo. Talvez o Alazão de pelo avermelhado e de porte faceiro e rebelde. A galope, cortava aquele estradão... O mesmo por onde passava o velho carro de boi e que seguia até a roça de milho nas várzeas e levava até ao pasto onde as vacas passavam o dia a pastar. Ainda de longe eu as via com suas crias, deitadas sob alguma sombra ou vasculhando as moitas de capim. Estavam sempre a ruminar. Penso que as vacas têm o sentido voltado apenas para aquele capim que comem sem parar. É só o que sabem fazer. Não respiram idéias como a gente e estabelecem uma relação necessária com aquelas gramíneas enquanto nós temos essas carências tolas de tantas coisas que se desencontram porque respiramos idéias demais.

Eu conhecia cada pedaço daquele cerradão que margeava o velho rio. Andava por eles e me entregava à sensação de liberdade quando soltava as rédeas. Naqueles momentos, estabelecia, assim como as vacas, uma única relação. A relação com aquela sensação de liberdade exposta ao vento. Para mim ela tinha a cor verde daquelas pastagens e daquelas árvores que circundavam o velho rio. Era uma boa amazona, confesso. Até que dominava bem aquelas rédeas.

Depois de brincar de amazona e sonhar embalada pelo galope do cavalo e pelo vento que ameaçava levar o chapéu tão disforme, eu voltava enfim o pensamento para minha obrigação motivo pelo qual eu estava ali naquelas paragens. Esquecia por instantes os devaneios. Uma por uma eu juntava as vacas com suas crias e as trazia numa procissão desordenada por aquele estradão até o curral, onde então as apartava de seus bezerrinhos até a manhã seguinte, quando meu pai as ordenhava.

Eu gostava dessa vida meio tropeira. Tinha certo ar rebelde e aventureiro. Meio indomável... Além dessa tarefa tropeira eu andava pelas cercas dos currais a equilibrar-se; apostava corridas com os meninos da escola e praticava saltos à altura; dava mergulhos nas águas sujas do córrego quando as águas do rio represavam nele em épocas de chuva. Até falar gírias eu já falei.

Mudei muito à medida que tomava formas de mulher e amadurecia os pensamentos. A vida faz muitas cobranças. Reajustar à nova vida me trouxe inseguranças e medos. Começou então uma etapa em que comecei a desaprender aquelas coisas tão belas e simples como andar a cavalo, equilibrar-se em cima de cercas, fiar o algodão ou a lã durante o inverno. Tantas coisas...

A essa altura já não consigo equilibrar minha própria vida. Tropecei em meus próprios passos que queriam se alargar. Desconheci-me tentando buscar um mundo tão diferente ao que estava acostumada. Já não consigo fazer uma ligação entre mim e aquela menina que expunha sua vida ao vento enquanto galopava em cima de um cavalo pelos estradões e juntava o gado com a experiência de um peão.

Hoje vejo que essas lembranças e essas saudades são co-autoras dessas palavras que rabisco sem cessar. São cúmplices dessa aventura que abracei e a qual me lanço com a mesma intensidade daquele galope que cortava o estradão. Em algum lugar dentro de mim ainda mora esse ar rebelde e aventureiro. Mínimo... Mas o suficiente para me fazer escrever... Escrever...

Há muito não exponho minha vida ao vento. Exponho às palavras enquanto rumino as lembranças de uma era indomável. Muito de mim ficou lá nessa era. Nem percebi que fui me abandonando aos poucos, e adquirindo uma sensibilidade enganosa. Junto com ela uma ilusão falsa de resistência ao longo dessas quatro décadas. Hoje percebo que essa resistência de nada me valeu. Não era sólida. Talvez indomável.

Tenho saudade da rebeldia daquela menina que andava pelos cerradões, sentindo o cheiro da terra úmida, das queimadas, dos brotos verdes que despontavam meio indecisos e ingênuos. Vejo que me tornei pobre por ter perdido essa rebeldia saudável que me dava coragem. Tornei-me covarde pela falsa resistência que só me trás insegurança. Uma mudança radical que não consigo domar. Aos poucos essa mudança me parte em duas. Uma parte de mim quer resgatar a rebeldia que ganhava asas em contato com a natureza. A outra parte quer recolher-se numa paisagem difusa de mim mesmo. Acho que desaprendi até mesmo a fórmula de viver. Por isso tenho essa insegurança que me impede de criar asas e ao mesmo tempo equilibrar-se. Acho que sou um ser indomável...

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 06/08/2009
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