AS BEM ASSOMBROSAS TIAS E A EMPAREDADA - 3/08/009 - Lia Lúcia de Sá Leitão

O destino cruel sempre marca uma época, a exemplo disso a ignorância do sistema patriarcal rígido trazido pelo invasor e dominador português e implantado na sociedade pernambucana, ali entre aqueles casarios imponentes, moças de sociedade jamais tomavam banhos no mar, escravos e serviçais enchiam vasilhames, talhas, jarras com as águas salgadas para as jovens limpar a pele. Quantas reservas, quantas chaves, quantos silêncios e proibições foram reservados para as pobres meninas ricas, sem rebeldias sabiam apenas as mentiras encobertas nos olhares contritos ao pé de Santo Antônio na Igreja secular.

Contraditórias teorias domésticas, o pai pode tudo porque contribuiu com um espermazinho, a mãe chora a mão de ferro masculina mas não denuncia porque o pai é o responsável pela comida que é posta a mesa, a mulher sempre esqueceu que na falta do seu útero e sem os nove meses de pança intumescida não tem herdeiros, mulher seca no nordeste é mulher devolvida, seu homem assume o rebento perante Deus e ela seria uma escrachada se repudiada, na verdade a mulher sempre não via o obvio, as negrinhas serviçais da casa embucharem, as moçoilas que vinham da Zona da Mata do nada estavam prenhes, o homem sempre estava no patamar, na cadeira de balanço ou na rede na varanda, tudo via e tudo sabia, seu lugar era em destaque na sala de visitas, de frente para a porta controlava a saida e a chegada das pessoas, o angulo exato para o corredor dominava a circulação dos familiares no interior da casa. É dele, do macho dominador o poder de decisão, representante da moral e bons costumes. Ele determina o poder da justiça familiar, é dele a mais antiga nova fórmula da preservação do poder de um Nome Sr. Dr. Fulano de Tal, filho da família tal, parente do Barão e do Senhor de Engenho tal. Não importava se o engenho já estava arrendado ou de fogo morto.

O importante era garantir a pose oligárquica, e assim garantir a comida e os luxos de uma aristocracia falida, essas atitudes são tão velhas quanto as fofocas cochichadas nos salões dos vizinhos e na rua do comércio sobre as virgindades das meninas.

Pobres meninas aceitavam os velhos fedorentos e sebentos de suor dos comerciantes portugueses destinados a casar com moças prendadas, coitadas daquelas que nem podiam ir naquela Igreja namorar o jovem estudante de Direito, essas, as mais reprimidas sempre foram as mais endiabradas, astuciosas algumas venciam os rigores da lei doméstica, outras assumiam a triste sina da clausura ou não muito raro pagaram com a própria vida a vergonha da desavergonhada aventura por um amor real.

Tenho algumas histórias escabrosas de família que arrepia o mais destemido leitor de contos BEM ASSOMBRADOS, fatos verdadeiramente históricos da vida diária passada de avó para avó no intuito de segurar a virgindade das netas fogosas.

A tia Jenoveva, matrona com apenas um filho mestiço estudado na Europa, esse nunca carregou o nome da família, até conheço os meus primos mas mantemos a discrição de não invadir privacidades ou segredos familiares como declarar aos filhos dos filhos que seu ancestral tão influente na sociedade era filho de um negro escravo com a impoluta senhora da Rua do Imperador. Pois, a tia Jenu inverteu o processo social domiciliar patriarcal para o poder dela, falavam as má línguas e estava escrito num diário datado de 1835 que o pai e a mãe dela morreram de uma doença misteriosa ambos no mesmo dia.

Os serviçais e os homens obedeciam cegamente cada determinação, uma ordem de Jenu não era discutida. Segundo esse diário escrito pela professora de piano e amiga íntima, a tia no final de seus dias, já velhinha declara Amália como a sua fiel amante. Voltando a essa mulher que quebrou o códice familiar com o poder das suas ordens. Verdadeiramente bem distribuidas seguiam uma hierarquia, na sua sala de piano e costuras as diretrizes domésticas, as ordens distribuidas na cozinha eram as mais determinantes para capatazes, funcionários e escravos, castigos ali, tapas acolá, uma surra encomendada para alguma mulher que inescrupulosamente se exibia para o futuro ex marido.

As ordens distribuidas no gabinete da biblioteca foram as mais cruéis tudo que pude entender, ali, a belíssima Jenu dava sumiço a algum desconforto pela força e pelo poder do nome que carregava do seu pai e de seu já determinado finado marido.

Tia Jenoveva ficou viuva oito vezes, mas sempre apaixonada por cada marido defunto, quando eles não mais serviam em obediência morriam misteriosamente e um outro assumia o cargo de chefe da casa.

Quase na mesma época da Tia Jenoveva na Rua da Palma outra moça de sociedade vivia um drama familiar, mais uma tia velha da minha família, também parente próxima de tia Jenu, menos rica mas com tradição, frequentava a Missa na Igreja de Santo Antônio e assistia nos melhores salões e festas da capital.

Tia Augusta era moça casadoira, os pais procuravam um rapaz com estirpe, e finalmente encontraram um viúvo pai de seis filhos endiabrados e mal educados que arrotavam e saltavam puns na frente de todos fosse numa reunião familiar, fosse na Igreja, os meninos apanhavam mais de uma tutora açoriana que negros fujões. O homem era gordo sanguíneo e tinha bigodes e cavanhaque abastecidos por pelos fedorentos de suor e células mortas nas abas do nariz. A tia Augusta era bonita, fidalga, prendada, delicada como uma flor dos trópicos. A tia com idade de 17 anos já estava velha para esperar outro pretendente e assim a família marcou a festa de confirmação de noivado, convites foram distribuidos para a alta sociedade e para o clero. Os convidados nos idos de 1831, em plena Setembrizada, mesmo temerosos com todas as desordens da soldadesca, Bispo, Juiz, Médico e Barões da Zona da Mata canavieira não se negaram ao dia do noivado. Hoje desconfio que o promotor Nunes Machado, filho de Bernardo José Fernandes de Sá e Margarida de Jesus Nunes Machado, fez toda aquela anarquia no Recife em nome da liberdade para o povo, em revolta daquele noivado da prima, uma moça tão formosa oferecida sem dó a um guabiru, explico,guabiru era o político português corrupto. ( A História nunca fala das banalidades emocionais dos heróis e das infelizes moças.)

Voltando ao famigerado noivado, tia Augusta vestida em trajes de princesa, com colares e brincos de pérolas legítimos, pulseiras de ouro trabalhada com encrustações de pequenas pedras preciosas e brilhantes, uma medalha de Nossa Senhora do Socorro em forma de broche encantava o decote do vestido confecionado em Paris. Todos estavam no salão do sobrado, uma gritaria e tiros de arcabuzes foram ouvidos, palavrões, tudo contradizia a Sentembrizada naquela casa de família oligárquica. Um susto aqui, outro ali, fazia parte do show. Quando a tia entra na sala, um assombramento geral pelo deslumbrante ser, inicia uma suave valsa, os convidados elogiam a noite e a moça chega ao centro do salão, com o olhar seguro daquilo que queria e diz em voz aveludada, meu pai e minha mãe, Sr. Bispo, e Senhores convidados, meu caro e ex futuro noivo, tenho o prazer de assegurar em bom tom que hoje me desligo da sociedade e me recolho ao Convento das Beneditinas, pelo sonho que revelei ao Sr. Bispo, a pedido de Nossa Senhora do Socorro por minha felicidade junto ao Nosso Senhor Jesus Cristo. O espanto geral, os buchichos de todos, o Bispo tomou um aparte e saiu em defesa da noviça, o noivado foi cancelado e na segunda feira seguinte a moça foi enclausurada em Olinda com um sorriso nos lábios divertia-se com semblante desesperado do pai que perderia a participação de sócio na fortuna do futuro genro.

Finalmente chegamos na Tia Olga, essa é segredo de família, os historiadores se bateram, passaram noites sem dormir, imaginaram e sonharam com os fatos, escreveram livros, imaginaram, coitados, encheram o juizo de vinhos, cervejas e uisques, mas nunca puderam comprovar nada mais que suas desconfianças. Agora salvo a alma de Tia Olga, uma das emparedadas da velha rua Nova. Deus ilumine a sua pobre e infeliz alma, e escute seus gritos de horror e as súplicas, as tremedeiras do medo da morte.

Jovem bela e cheia de vida, corpo altivo e voz doce, um sorriso sem igual, cabelos de um loiro anelado aos moldes da época. Menina moça que aos 16 anos apaixonou-se pelo jovem herdeiro terceiro filho de um casal abastado de ricos comerciantes residentes no sobrado em frente a sua moradia, por trás da portinhola da janela de seu quarto a menina podia ver Ricardo sentado numa espreguiçadeira lendo jornal na sala da biblioteca.

O rapaz tinha retornado médico da Europa e com revolucionários planos de construção de um Hospital para desequilibrados mentais, nessa época em Recife o que mais tinha circulando pela cidade eram malucos abandonados pelas famílias infelizmente muitos mendigos e indigentes.

Certo dia o Dr. Ricardo percebe o movimento na casa em frente a sua de uma jovem que parecia elétrica aos pulinhos. Parou, olhou fixamente, e resolveu acenar, a portinhola da janela fechou-se rapidamente, ele riu, pegou o chapéu e desceu as escadas, chegou na calçada e resolveu atravessar a rua e bater na casa do vizinho. Puxou a sineta e logo um homem vestido de linho azul e brilhoso de tanta goma e ferro quente, deu um bom dia e ele se apresentou e logo aquele homem austero abriu-se num sorriso amável, tomou o braço do jovem e adentrou na casa com o mais novo convidado. Conversaram durante muito tempo, tanto tempo que ao sair do casarão era noite. Prometeu voltar no outro dia para uma partida de gamão, e assim o fez, e por muitas vezes repetiu as visitas.

Ricardo tornou-se íntimo, ao ponto de passar a sair com os irmãos da tia Olga, tio Pedro e tio João, gêmeos, devassos, boêmios e péssimos exemplos. Tia Olga já tinha permissão de frequentar a sala quando Ricardo estava na casa e assim ficaram amigos, mas o interesse de Ricardo era namorar, noivar e casar com tia Olga, certo dia Ricardo e os futuros cunhados chegaram na madrugada dos bordéis e foram na cozinha, comeram, um dos tios acertou chegar no quarto, o outro dormiu ali na cozinha mesmo, e Ricardo foi até o quarto de tia Olga, acordou a moça, e pimba, beijos, abraços, declarações de amor eterno, tia Olga perdidamente apaixonada pelo rapaz se entregou de corpo e alma, ele mais velho podia ter evitado tudo aquilo, mas a moça cedeu aos encantos e a madrugada tornou-se o castelo dos sonhos. A amizade foi amadurecendo ainda mais, nada na casa ficava sem a participação de Ricardo, ele aproveitava para sair com os cunhados, e voltar sorrateiramente e cair na cama de tia Olga, até o dia em que o tio Bento resolveu marcar a data de casamento, foi uma festa, as famílias já muito amigas viviam um momento de felicidade, mas a menstruação de tia Olga não vinha, a barriga estufava, os seios cresciam, ela chamou Ricardo e contou a verdade, estava grávida, como iria casar com aquela barriga enorme? Ricardo diz que mesmo assim quer tia Olga como esposa, mas ao chegar a sua casa, nervoso a mãe do rapaz fica sabendo dos fatos e influencia a fugir, o rapaz resiste, mas a mãe vai influenciando e aterrorizando com fatos cruéis já acontecidos na sociedade recifense e com apoio da milicia de uma vez que era para limpar a honra da família. Mesmo assombrado com as histórias de maldição contada aos prantos pela criança que ela tinha no ventre, que ele sempre prometeu assumir, a sociedade escandalizada se retirava em cabisbaixo e mexericos, tio Bento desonrado três vezes, pelo nome, pela sociedade e pela filha prenhe. Fez levantar uma parede com intervalo de dois metros e meio o local só cabia a moça, um buraco no chão que dava para passar o prato de comida, ratos, baratas e formigas, e seu intento era deixar a filha naquele castigo até parir. Tia Olga foi definhando pelo calor abafado, pela desilusão, mãe o rapaz resiste até poucas horas antes do casamento já marcado na Igreja de São Francisco, mas, na hora de ir para a Igreja o rapaz dirige-se às escondidas para o cais do porto e embarca num vapor de volta para a Europa. Tia Olga chegou na Igreja e teve a desagradável notícia que o noivo já estava longe do Recife, no desespero de menina apaixonada, entrou em histeria e berrou para todos, o que seria daquela pelo desconforto e se entregou a morte lenta, dolorosa e cruel. Um dia amanheceu morta, como ninguém sabia e só o mau cheiro empestiava a casa, tio Bento mandou tampar aquela passagem e toda a história foi esquecida, naquele lado da casa ficou o piano trazido da Alemanha, as namoradeiras ao redor do tapete, finalizando, todo o ambiente foi modificado, tia Olga esquecida ali sem sepultura e ainda vestida de noiva.

Lia Lúcia de Sá Leitão
Enviado por Lia Lúcia de Sá Leitão em 04/08/2009
Reeditado em 04/08/2009
Código do texto: T1735465
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