Juju e a Torre de Babel




Seu nome era Juliana mas todos a chamavam de Juju. Uma gata , vinte e dois anos, dotada daqueles encantos que tão bem caracterizam uma bela brasileira - charme, sex appeal, curvas perfeitas e um rosto exótico. Morava na periferia de São Paulo, em Capão Redondo. Pouco afeita aos estudos, seu sonho era ser modelo mas ninguém é perfeito. Toda aquela beleza e proporção se distribuiam em apenas, um metro e sessenta que contudo, lhe emprestavam um jeito mignon, meio "femme enfant" como diriam os franceses, mulher criança: delicada, trejeitos de menina, voz de garotinha desprotegida. Desde que trabalhara em um Pub como garçonete, Juju descobrira que sua alma gêmea só poderia ser um estrangeiro. Mesmo falando pessimamente o inglês foi ali que ela conheceu Stevie, seu príncipe...ou melhor, rei. Vinte anos mais velho que ela, foi amor a primeira vista. O idioma não pareceu ser um obstáculo a comunicação, visto que, bastou um olhar para que a paixão se instalasse e as afinidades se manifestassem :


- Hello lovely, girl ! Do you speak English?


- “mor ou lessi” – disse Juju com uma certa autoridade.


- Your English is very good. You have a perfect accent ! – disse ele, já rasgando um elogio.


Ela logo compreendeu. Stevie também se esforçava, ensaiando algumas palavras em português.

- Brasil, clima muito bom ! “molheres” bonitas !

- Ah o Brasil ! – ela suspirava - nada se compara ao calor humano dos brasileiros. Somos um povo pobre, mas feliz.


- Inglaterra muita fria, muuuuita fria !


O affair durou dois meses, Juju, nunca foi tão feliz. Sentia-se uma rainha. Ele a levava a restaurantes caros, abria a porta do táxi para que ela entrasse. João, seu ex- namorado, vivia reclamando do preço da passagem do ônibus e a única porta que ele abria era a de sua casa, já que ele tinha a chave.



Um dia, Stevie chegou no bar enquanto Juju trabalhava. Tinha um olhar inconsolável, como um velho boxer inglês que fizera xixi no tapete, já esperando a sova de jornal. Ele então, deu-lhe a triste notícia de que seria transferido para os Emirados Árabes. O coração de Juju se partiu. Agora, ela percorria o pub carregando as bandejas e limpando as lágrimas no avental com uma expressão macambúzia. Na mesma noite, chegou a ver uma aliança de ouro na carteira de Stevie e, de súbito, sua profunda tristeza transformou-se numa cólera canina, somente apaziguada, graças a atuação de Stevie. Com um ar de solenidade, ainda que devastada pelo queixume, como um verdadeiro Sir. Laurence Olivier disse :


- Mandei fazer, pensando em casar com você, sem saber “deste” tragédia de ser transferido!
 

- ...mas essa aliança é masculina ! - disse Juju histérica - Esse não é o meu número, baby !
 

Ela adorava chamá-lo assim, como nos filmes que via na TV, embora aquela expressão americana despertasse, muitas vezes, uma contida fúria britânica em Stevie. 


Seu artifício, com toda a fleuma que lhe era própria foi:

- Darling ! “este” aliança eu “fazer” para mim, pensando - se Juju gostar do design, faço igual para ela mas, agora, “foder” tudo ! – e com a voz embargada, deu-lhe a aliança dizendo:

- Pega, manda derreter, dá para fazer algum money.

Sua expressão era desoladora com um hooligan, assistindo a perda de um jogo do Liverpool.


- Ah Stevie ! você é tão fofo... fofo, sabe ? so sweet ! Guarde a aliança – disse ela enternecida - Quem sabe, você ainda volte para o Brasil, baby ? 


Stevie estava inconformado como uma velha raposa que mais babou do que comeu as uvas. Naquela noite, ele tomou quatro Red labels e seis vodkas. Saiu carregado pelos seguranças, amaldiçoando os Emirados Árabes, e uma tal de “fucking wife*” em Manchester. Seus berros só cessavam quando ele balbuciava o nome de Juju como um bebê.


Ela ainda se comunicou por algum tempo com o bardo inglês por email. As mensagens pareciam códigos de guerra entre culturas pouco amistosas, mas nada que o discurso amoroso, docemente criado pelos dois pombinhos não pudesse decodificar :

Juju dizia:


- I miss you, very, very, very !!


Stevie respondia:


- me too, minha chuchuka, I love you. Vê se toma conta de você “nesta bloody” Pub!
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Juju nunca entendeu aquele número imenso de “X” que Stevie colocava no final das mensagens. Achava bonitinho, mas preferia usar a letra “J” e respondia igualmente:

- Mil beijocas da sua Juju
 

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Quatro meses se passaram e Juju estava sem namorado, até que o destino lhe bateu a porta de novo e dessa vez, parecia ser para valer. 


Conhecera um americano de Kentucky - Draic, comissário de bordo, um gato de olhos azuis. Esse parecia ser o homem certo para ela. Era mais novo e vinha para ficar, ou, pelo menos, quase isso ! Sua rota permanente seria : Nova York - São Paulo, duas vezes ao mês. Depois de três meses, já falava em fixar residência no Brasil, porque ficar longe de Juju era pior do que se privar de hambúrgueres e cervejas Budweiser. 


Um dia saíram para comprar um celular para ela. Draic, muito ciumento e zeloso queria estar sempre em contato com Juju. Na loja, ela pegava os celulares expostos na vitrine e, como se fosse um acessório, se dirigia ao espelho fingindo falar no telefone, para ver qual combinava mais com ela. Acabou levando um rosa pink, que caía bem com sua nova blusa. Draic, logo percebeu que Juju levaria um bom tempo, até aprender a pegar as mensagens no novo aparelho. 


Depois, foram ao shopping, em seguida comprou um kit da Natura e cosméticos da Avon, mas Draic elogiava seu bom gosto nas compras, sobretudo nas liquidações e saldões. Juju tinha mais prazer numa liquidação do que na cama. Draic ficava admirado com a soma irrisória que gastava para vê-la chegar no hotel radiante, cheia de sacolas. Juju, sentia-se, às vezes, meio exploradora, dizendo que os preços eram meio “salgados”, porém, bastavam algumas palavras doces, da parte de Draic, para que Juju, já efusiva, se sentisse à vontade novamente: 


- That’s ok sugar, eu “fazer” qualquer coisa pra ver Juju feliz !


Aquela era mesmo uma combinação perfeita do doce com o salgado, como um tradicional Romeu e Julieta.

                                                       
                                                                    

Passados sete meses, Juju começou a se deprimir com o relacionamento. Draic ficava com ela, apenas dois dias a cada duas semanas, todo o resto do tempo ele viajava. Juju sentia-se como uma “mulher de marinheiro”. Draic mal compartilhava as agruras de seu dia a dia que, na verdade, não tinha o menor charme. A verdade, é que ela estava só nas horas mais duras - quando carregava bandejas pesadas com dez copos de Guinness e fritas. As grosserias que ouvia dos clientes bêbados, sobretudo os irlandeses e australianos. 



O dono do Pub, um turco chamado Abdullah, vivia comendo sanduíches de picles besuntados de manteiga, junto a generosas doses de vodka Absolut. Sempre de olho nas meninas, ele tentava acalma-la :


- Você tem que ter paciência Juju. Eles é que tem os dólares e os euros. Que garçonetes ganham tão polpudas gorjetas, hein ?




Juju saía do bar por volta das três da manhã. O taxista, Jorge ficava penalizado com aquela flor de lótus, em águas tão insalubres. Deu-lhe até uma medalha de Nossa Senhora, para protege-la e muitas vezes, a levava em casa de carro em troca de uns beijinhos. Com o tempo, as carícias cobradas eram um pouco mais íntimas, uma espécie de bandeira 2 amorosa mas, Juju já não se importava. Cansada de passar tantas horas em pé, Jorge e seu cavalo: um Fiat branco imaculado, juntamente com sua lança justiceira parecia um santo, perto da idéia de encarar uma hora e meia de ônibus. 



Nos últimos meses, Juju vivia no limite. Os sonhos, que antes tecera, naquele lugar, transformavam-se, pouco a pouco, apenas num trabalho árduo e mal remunerado. Um dia, desabafou com Abdullah :


- Esses gringos são uns folgados. Duvido que eles sejam assim na terra deles. No Brasil, tudo pode, né ? Discriminação, isso é preconceito, sabia !?


...mas Abdullah, logo argumentava:

- Não seja ingrata, Juju ! Tem coisa muito pior. Preconceito é ser gay e muçulmano em Berlim.



Juju alternava crises de choro com excessos de entusiasmo, Tais excessos, elevavam o nível de tostesterona de muitos clientes que, consequentemente, pediam mais drinques. Abdullah apreciava aquela próspera cadeia química. Depois, Juju ia para trás do balcão e entornava algumas tequilas. Com o tempo, ela vivia numa bruma alcoólica como se estivesse numa Avalon combatendo os saxões.




Um dia, a garçonete Rose faltou. Juju servia o dobro de mesas e, como se não bastasse, o bar estava lotado por causa de um jogo de rugby. Jarras e mais jarras de chope, uma gritaria. Aquele povo estava bem longe dos românticos personagens das charnecas bucólicas de Yorkshire. Um cliente irlandês pediu-lhe um cheese bacon e sem a menor cerimônia, passou a mão no bumbum de Juju, um dos mais cobiçados, pelos expatriados. Ela olhou-o com uma cara de “Carrie a estranha”, e com toda a sua força psicótica, desejou que todos os encanamentos e chopeiras do bar explodissem, que os extintores de incêndio, num efeito poltergeist, abrissem lançando seu pó químico naqueles visigodos, levando, por fim, aquela muvuca pelos ares. Sua mão, estava preste a pegar a faca de patê e enfiar na barriga daquele cretino mas, Abdullah logo interferiu, afastando Juju da possível cena do crime. 


Juju, naquele dia, voltou para casa arrasada, chorando no ombro de Jorge que guiando, a consolava, acariciando suas pernas torneadas e mudando as marchas habilmente. Naquela madrugada, ela jurou virar a sua sorte num jogo, que há muito, era de azar.



Foi então, que Juju conheceu um holandês, Samie e foi ele quem, finalmente, abriu-lhe os olhos:


- Esses estrangeiros vem para cá só para se divertir. Você tem que apostar no seu futuro, apostar em você, ao invés de esperar que algum príncipe encantado a salve !


Juju ouvia cada palavra, como se Samie fosse um misto de pai e exímio consultor econômico, mostrando-lhe, quem sabe, o caminho das pedras. Samie então lhe perguntou:

- Você já pensou em usar seu próprio esforço e capacidade para se dar uma boa vida ?


- Como assim ? - perguntou Juju curiosa - seu esforço e capacidade, junto a uma boa vida, nunca lhe pareceram uma conjunção favorável. Era mais fácil Marte e Vênus colidirem e formarem um planeta com seres andróginos.


- Negócios. Estou falando de negócios! Você não pensa em trabalhar nesse pub para o resto da vida, não é ?


- Claro que não ! - disse Juju, já ávida pelas palavras mágicas que poderiam fazer a lei de Murphy virar pó.


- Porque você não vem trabalhar comigo ?


E esse dia, foi um divisor de águas na vida de Juju. Em pouco tempo, tudo mudou radicalmente. Ela galgava a passos largos, para além da torre de Babel*. Samie era seu rei Hamurabi* e o céu era o limite.




Hoje ela mora num apartamento luxuoso em São Paulo, embora passe muito tempo viajando. Tem um carro importado e freqüenta lugares caros. Já nem se lembra daqueles tempos ingênuos em que sonhava com um homem que a tirasse daquela vida sacrificada. Lembrou-se de Rose, a outra garçonete, pobrezinha ! essa se prostituiu. Seu nome de guerra, agora era Mel. Isso para Juju era a morte ! Aprendeu trabalhando duro a se manter. O excesso de trabalho, quase lhe causara uma úlcera, afinal, era muita tensão e responsabilidade, contudo valeu a pena. No começo foi difícil mas, graças a Samie e um treino altamente profissional, ela se habituou à nova e promissora carreira. Hoje ela engole trinta saquinhos de cocaína como se fossem balinhas de alcaçuz, circula nos aeroportos de Amsterdã e Nova York com uma desenvoltura internacional e com um auto-controle digno de um mestre Zen, entrega seu passaporte para ser carimbado. Seu intestino funciona como um relógio e ela defeca a droga com a eficiência de um pastor alemão hiper treinado. 



Juju, se transformou no ícone da expressão: “santinha do pau oco”. Assim como nos tempos da mineração no Brasil, em que se traficava o vil metal, dentro dos santos de madeira, Juju tornou-se a própria. Longe dela, usar imagens religiosas. Católica e devotíssima de Nossa Senhora, ela jamais cometeria um sacrilégio desses ! O que lhe parecia absurdo é que, mesmo em tempos de aviões a jato, eles ainda utilizavam mulas para transportar a carga mas, Juju estudava cada movimento daquele próspero negócio e, em breve estaria entrando no mercado financeiro, longe daquelas perigosas viagens. Na verdade, Juju sempre esteve mais para Jack Brown* do que para Maria cheia de graça*.



Juju, chegou mesmo a encontrar Draic, o comissário de bordo, em um de seus vôos.
Ela disse-lhe, vaidosa e com a cabeça erguida :


- Finalmente me encontrei. Trabalho agora com exportação de especiarias brasileiras para uma empresa estrangeira. 


Draic ficou surpreso com sua mudança. Ela estava deslumbrante. Vestia um jeans Armani com uma malha de puro cachemir e seu inglês era impecável. Era difícil acreditar que aquela, era a mesma garota daquela cena patética, comprando um celular.

Ele ainda ajudou-a a desembaraçar as malas na alfândega, facilitando assim, o trabalho escuso de Juju. 


Por fim, ela deu-lhe Adeus soletrando o raio daquele nome certo e jocosamente, com um sotaque típico redneck*, disse em alto e bom tom: 


- Bye, bye Draic!

No passado, ela o chamava de “Drag”. Esse era o som mais perto que ela conhecia do nome dele. O segurança, Jailson, invariavelmente, espantava umas Drag Queens, que insistiam em entrar no bar. Juju podia ouvir lá de dentro:


– Qualquer hora, ainda sento uma porrada nessas drags ! 


Mais tarde, Juju ficou sabendo, que um australiano de nome Bob, acabou levando Morgana, uma delas, para Sidney. De qualquer maneira, verdade seja dita: O pub se esforçava em manter um tradicional perfil heterossexual.


Já no carro, um Honda civic branco, ajeitando o sutiã que lhe comprimia os seios, agora número quarenta e quatro, Juju pensou: "A vida é assim mesmo, cheia de ciclos" e num suspiro de alívio, como quem olha para o passado como uma névoa distante, disse para o seu fiel chofer:


- Toca, Jorge ! 




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Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 11/06/2006
Reeditado em 18/04/2008
Código do texto: T173479
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