A Ponte.
Ver as fotos de Lucas no álbum de família é um recorte no tempo, um registro de um passado glorioso. Vivíamos em uma casa grande com quintal e árvores, um universo particular entre índios e cowboys, astronautas e alienígenas.
O que chamavam de infância era uma sucessão de eventos; pescar rãs no alagado, tomar banho de chuva, guerra de lama, roubar goiabas no sítio do Coronel, era este o sabor das memórias de menino. Junto com meu irmão mais novo, dominávamos um mundo fantástico construído pela imaginação, em torno de nós.
As aventuras da infância acabaram numa dor de cabeça de Lucas, as sucessivas visitas a médicos cada vez mais longes, em intervalos regulares; as chapas de cabeça, os exames de nome complicado e os remédios que traziam sono e não curavam.
Quando terminaram as férias Lucas não retornou à escola, a professora nada perguntou e aos meus colegas disse que ele estava com dor de cabeça, uma dor muito forte.
Assim se deu a curta vida de estudante do meu irmão, logo sumiu na memória dos coleguinhas da escola e mesmo os garotos que jogavam bola conosco perdiam-no de suas vidas.
A recordação mais nítida daqueles tempos é um sorriso lindo, dos segredos que trocávamos e nossa cumplicidade firmada nesses códigos; quando os comprimidos levaram o brilho deste sorriso, deixando em seu lugar uma expressão longínqua e abstrata que ainda procura o horizonte das nossas tardes ensolaradas.
Minha mãe foi ficando forte e determinada, mas os comprimidos que não curavam roubaram a cor dos seus cabelos, puseram vincos em sua pele e muitas lágrimas nos seus olhos. Os natais foram ficando pálidos; as conversas silenciosas, mesmo os risos foram ficando nervosos e vagos.
Durante muito tempo pedi a Papai Noel nossa alegria de volta, deixaria Lucas jogar com a minha bola de couro, não brigaria mais pelas goiabas do Coronel; então percebi que Papai Noel não existe, os presentes são comprados na loja pelo papai, que nestes dias dorme abraçado com Lucas.
Havia dias em que ele andava pelo quintal, olhava as borboletas e se distraía com os pássaros que vinham nos visitar, aquele quintal estava esgotado em segredos e graça. O pouco contato que nos restara era a sua saída do banho, ele vinha com o pente na mão para que eu lhe penteasse o cabelo.
Era o nosso momento, tocava seus cabelos compridos e os penteava calmamente, até que ele pedia o pente e retornava para guardá-lo no banheiro, me habituei a esperar o banho de Lucas antes de jantar.
Minha mãe era uma mãe amorosa, abandonou seus sonhos e agarrou-se as incertezas; recebi todo tipo de atenção e cuidado, mas ela nunca me olhou como olhava o Lucas, ainda quando ele se descontrolou e quebrou o nosso pente de osso e nunca mais permitiu que outra pessoa, senão minha mãe, lhe penteasse os cabelos.
Lucas demolia a única ponte que conhecia para chegar até ele, neste dia descobri que precisava falar com ele, dizer coisas muito importantes que um irmão mais velho deve dizer ao caçula.
Estudei por nós dois e ainda estudo, minha mãe nunca pintou o cabelo, aprendeu a viver com esta cor opaca e triste; papai se aposentou e brinca com Lucas de um monte de coisas, assistem ao futebol pela tv, e tomam juntos sorvete de creme, o favorito de Lucas e da família inteira.
Lucas agora tem quarenta anos, ainda toma aqueles remédios que não curam, papai dorme abraçado com ele.
Apesar de não acreditar em Papai Noel, todo ano dou uma bola de couro para meu irmão, ele as adora e sei que esta ponte permanece firme e nos pertence.