O Papa Figo - Lia de Sá Leitão - 2 de agosto de 2009
Para minha amada irmã e grande amiga Vânia Trinca incentivadora dos novos textos da escrivaninha ofereço algo bem assombrado. Um abraço Lia
Certa feita estava saindo de Olinda a caminho de Recife, capital de Pernambuco, em um daqueles dias que o céu sem nuvens lembra a infância e a gente dirige o carro sem olhar do lado, a calçada e seus limites, sinaleiros, nem mesmo se ouve a música do Cd nas alturas. A Av. Agamenon Magalhães parecia um tapete, só parecia, nenhuma blitz no giradouro ou ônibus vindo do surbúrbio parado próximo a Casa Cor de Rosa, sem explicação do tempo psicológico as historinhas bem assombradas povoavam a memória e um sorriso irônico ao lembrar as tremedeiras dos mais corajosos, mamãe prendia o risos e olhava sutil o silêncio e calmaria doméstica. As lembranças de cada uma das crianças sentadas nos degraus da varanda e mamãe na cadeira de balanço chamando atenção para não aceitar nada dos estranhos nem mesmo daqueles que por ventura atravessassem de um lado para o outro a rua do condomínio. O terrorismo era profissional mas ali, não se desviava a atenção da história do Papa Figo, e tudo iniciava assim:
Meninos, vocês conhecem a história do Papa figo? E respondiamos em uníssono, não sabemos não, conte tudo certinho. Ela ria e falava que no caminho de Olinda tinha um casarão antigo que o dono era um rico Senhor de Engenho, mas sua família era renegada pela sociedade tanto a de Recife quanto a de Olinda, todos tinham pavor daquela gente. Quando essa família saia para passear, o cabriolet, uma espécie de charrete dos ricaços antes dos automóveis, era todo preto, e apesar de ser conversível permaneciam com a capota erguida e com cortinas de rendas pretas,mais parecia com um rabecão desses carros de levar defuntos. Verdadeiramente aquele cabriolet levava mortos vivos. Essa gente não frequentava Igreja, nem Católica que era religião obrigatória do Brasil nos idos do século dezenove e nem às proibidas ou escondidas como Macumba, Espírita ou Evangélicos, apresentava-se sem credo e isso era verdade, a família não cria em Deus por causa das mil promessas que a Senhora de Engenho tinha feito aos Santos pela saúde dos fílhos e nada adiantava para salvá-los daquela maldição. Quando jovem, a Senhora de Engenho seduziu o Senhorzinho namorado da irmã mais velha, que ficou moça velha, moça virgem, tia solteirona, chegando a incurável tuberculose por desgosto de amor, e no leito de morte amaldiçoou a irmã com uma praga infernal, todos os filhos da irmã só se salvaria de uma infeliz doença no sangue se comessem frequentemente o fígado de crianças. Praga de infeliz é tiro e queda, pega nas costas de quem tem culpa, e assim aconteceu. A Senhora de Engenho pariu dois filhos que até a idade de 8 anos eram crianças lindas,risonhas e felizes, mas à medida que foram crescendo foram adoecendo severamente e se tornaram pré adolescentes pálidos beirando amarelados, faltava em suas cabeçorras tufos de cabelos tornando-os parcialmente carecas, pestanas e sobrancelhas peladas, barrigudos e pernas finas pareciam toneis ambulantes com braços ossudos, sem uma lembranças de músculos ou gorduras que demonstrassem algum sinal de saúde. Os meninos para se manterem vivos necessitavam comer fígados crus e assim era feito. O Senhor de Engenho saia ao entardecer com os bolsos cheios de doces e procurava as crianças mais assanhadas dos bairros, dessas que falam com estranhos e aceitam toda sorte de doces ou chocolates ou presentes de quem não conheciam. O homem enganava-os mostrando o cabriolet chiquérrimo e prometia passeios pelas pontes do Recife, pelo Teatro de Santa Isabel, pela Avenida que beirava o Rio Capibaribe atravessando pela Rua Nova e retornando ao ponto de partida. As crianças se encantavam, mentiam para os pais, e aceitavam o tentador convite, ao entrarem no cabriolet a verdade era outra, o Senhor de Engenho abria sem dó a barriguinha das crianças, tirava-lhes o fígado e dava para os filhos comerem ali mesmo, as crianças morriam, o homem retirava-lhes os órgãos e recheiava-lhes a barriga com moedas para ressarcir os pobres pais desconsolados pela perda de suas crianças.
Naquele momento me dirigia a um café promovido por membros de um um determinado´partido político para angariar fundos para a campanha que estava próxima, senti um arrepio com a lembrança daquela história que minha mãe conseguia controlar a energia daquelas crianças e naquele instante eu fazia uma interligação entre a história de trancoso, do conto fantástico e da literatura popular oral com o imaginário juvenil, os anseios democráticos da minha juventude. A festinha que estava prestes a participar. Bastava-me naquele instante estacionar o carro entregar o convite na portaria do Clube famoso e estabelecer mais uma ponte de ligação entre a simpatia intelectual por uma filosofia e mais uma lembrança de pós adolescência. A velha tia solteirona, Madrinha, aquela bonachona de cabelos presos em coque, baluarte da moral e dos bons costumes induzia-nos a romper uma rebeldia histórica, a pentear os cabelos afarofados, limitar as bocudas e destemidas rimas contra o governo dos anos de tempestade, raios, trovões o tempo dos caldeirões das bruxas por todo o país, a Era dos AIs pós 64. A Tia solteirona não cansava de se benzer e acenar para cada um de nós com um rosário na mão berrando sem piedade que os comunistas nada mais eram que os papafigos da cidade.