Vida de menina I

Sempre me considerei uma pessoa estranha, um pouco diferente da maioria.Acho que quando nasci, um anjo também me sussurrou uma ordem: Vai ser gauche na vida!Só que o meu anjo estava mais para o anjo esbelto da Adélia, do que para o anjo torto do Drummond.Fato é que sempre sonhava acordada.Ou ,se não estava sonhando, ficava de olho nas brincadeiras dos garotos para fazer igual.E a cada escapada do olhar atento da mamãe, lá ia eu me juntar a eles para uma corrida no carrinho de rolimã, uma bente-altas, uma finca, ou uma partida de futebol.Como eram livres os meninos! E como os invejava nessa liberdade infantil!

Na escola,virava e mexia ,ouvia meu anjinho sussurrar: Ei, não se esqueça.Seja gauche! Então eu saía do comum, fazia questionamentos impróprios para a época, tinha surtos de liderança, como uma vez em que mobilizei a minha turma para um abaixo-assinado em prol da manutenção da minha professora favorita no ano seguinte.É que, a cada ano, mudávamos de mestra.Uma turma não ficava com a mesma professora dois anos seguidos. Como eu amava d. Míriam, achei que tinha a obrigação de fazer algo. E fiz. E ela ficou conosco. Eu era ou não era esquisita? Mas também com aquele anjinho danado...

Ainda nos distantes tempos de menina, às vezes cismava em achar que estava apaixonada. Enquanto as paixões eram pelos mocinhos dos gibis e dos seriados da tv, tudo bem. Mas à medida que se tornaram reais, foi um Deus-nos-acuda! Só na minha turma, com apenas oito anos, tive duas paixõezinhas que me deram trabalho. Durante as aulas, ficava dividida entre os olhos azuis de um e a morenice indígena de outro. E o meu pensamento voava longe até que uma reprimenda da professora me trazia de volta.  

E quando se tratava de festas religiosas, meu Deus! minha esquisitice era ímpar! A cada procissão, lá ia eu com outras crianças, segurando o andor de Nossa Senhora quando, de repente, começava o espolcar dos fogos de artifício. No primeiro estrondo, eu largava a haste que segurava e saía tresloucadamente para me esconder no primeiro buraco que encontrasse.Tinha pavor de foguete.Nessa hora, o medo falava mais alto e a querida Mãe de Deus só não se estatelava no chão porque mãos mais devotas acudiam a tempo e evitavam o desastre. 

Outras estrepolias infantis marcaram minha trajetória de criança interiorana, mas o que me diferenciava dos companheiros era o meu entendimento das coisas, do mundo ao meu redor.Era como se uma vozinha angelical, ou da consciência ou qualquer outra coisa de outra dimensão, me soprasse algo pouco comum ou me exarcebasse a sensibilidade.Eu tinha uma percepção mais aguçada e um pensamento que não condizia com a minha turma.

Hoje, se me vêm nítidas tais lembranças, só me confirma que muitos são os gauches na vida.E que a cada caminho tortuoso, a cada desvio do que foi estabelecido (por quem?), mais a gente cresce e se enternece com tudo que de bom, ou não tão bom assim, encontramos pelo caminho.

A voz do meu anjo ainda me diz coisas insólitas de vez em quando.E eu ainda o atendo prontamente. E o seu, já fez de você um gauche?
amarilia
Enviado por amarilia em 01/08/2009
Reeditado em 25/08/2013
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