Sonhos de Ueda
Sonhos de Ueda
Quando Uêda estudava para a primeira comunhão, tinha um amigo – Negreto – que se sentava ao seu lado nas aulas e estava sempre presente nas brincadeiras... faziam as tarefas do catecismo juntos. Depois cresceram, e ele se mudou para outro bairro distante e raramente se viam. Com a distância a amizade perdeu a afinidade também.
Certa noite, Uêda, sonhou com o seu amigo de infância. No sonho: Ela ia para o seu trabalho, era professora primária, lecionava na Escola Pingo de Gente. Quando no caminho, viu o seu amigo sentado nos degraus da escada da Igreja Católica, desolado e soluçando, com as mãos à cabeça, encostada na parede. Ao aproximar-se ela perguntou:
- O que está acontecendo, meu amigo, o que houve, pelo amor de Deus? Ele, ao vê-la, acalmou-se e respondeu:
- Estou com uma dor de cabeça insuportável, terrível, parece que tem milhões de formigas devorando meu cérebro. Dói muito.
Ela que era devota de Nossa Senhora Aparecida (Padroeira do Brasil), pôs suas mãos santas na cabeça dele e enxergou um tumor maligno. Assustada, tentou distraí-lo e o convidou para se sentarem no banco do jardim da Praça da Igreja. Por alguns instantes ficaram ali, olhando as crianças brincarem de ciranda, junto com as freiras.
Depois, serenamente, ele lhe disse:
- Eu melhorei, parece milagre, a dor sumiu, agora estou bem.
Uêda, de supetão, despertou, acordou assustada. Amanhecia e, da janela do seu quarto contemplou a Deus pelo espetáculo da natureza. Aquela energia dava-lhe força e sentido de vida e compreensão para entender o começo, o meio e o destino de tudo. Levantou-se e se preparou para mais um dia de trabalho.
Depois do café, caminhou para o seu serviço com a amiga de sempre. Elas seguiram a pé, a escola era perto de sua casa, e, num certo momento, acabou confidenciando o seu sonho... O que a deixou mais aliviada. Sua amiga calmamente lhe disse:
- Calma, Uêda, não se deixe impressionar, sonhos vêm e vão e a vida segue o seu curso. Sonho é apenas sonho, um ato falho do sono.
Ao chegarem na escola, na sala dos professores, ouviram duas colegas comentarem que o Negreto havia passado muito mal, entrara em coma, e fôra levado para um hospital da capital do Estado. Segundo o que ficaram sabendo, ele havia reclamado muito de uma dor de cabeça terrível, e, falando assim, caiu desmaiado. Foi socorrido pelos pais que tomaram as devidas providências.
Uêda e a amiga, Cirema, ficaram espantadas. Porém, falando baixinho no ouvido da amiga, Uêda, pediu que guardasse segredo do seu sonho. As pessoas não iam acreditar e seria motivo de sarro, chacota, enfim. Estava surpresa com a coincidência.
Três dias depois desse episódio, a notícia de que Negreto estava com câncer na cabeça, espalhou-se. Os seus parentes diziam que ele não tinha chance de vencer a morte. Sua situação era gravíssima e o caso era irreversível. Uêda ao tomar conhecimento disso ficou triste e muito impressionada.
Outro dia, Uêda, sonhou novamente: “Estava numa praça pública assistindo a um show musical, quando uma mulher muito estranha, desconhecida, colocou um carrinho de bebê bem à sua frente e, imediatamente, desapareceu no meio da multidão. De repente, viu-se sozinha no meio do mundo, e, com aquele carrinho e um bebê. Como um fantasma, do nada, surgiu o seu amigo, Negreto e, ela lhe dissera:
- Cara, você morreu, não pode ficar aqui, entre nós! Agora, você é um espírito, pertence a outra dimensão.
Ele lhe respondeu:
- Somente você pode me ajudar.
Ela lhe disse:
- Não posso. Não sei como! Não consigo resolver nem os problemas deste mundo.
Ele disse:
- Então vou ficar aqui, até que você mude de ideia.
Percebendo sua insistência, ela resmungou:
- Está bem! Vou ver o que posso fazer por você... vamos até o banheiro.
E, no caminho, percebeu que somente ela via ele. Ninguém mais podia vê-lo, ali. Era um espírito.
Já no banheiro, ela tentou lhe explicar que ele havia morrido, mas, ele já sabia disso. Todavia, estava com medo de ir para o plano espiritual. Implorou para que ela o ajudasse e ela lhe respondeu:
- Eu não sei como ajudá-lo. Contudo, o que for da vontade Deus, eu farei. Ele respondeu:
- Quando chegar a hora você saberá. Falando assim, desapareceu.
Uêda demorou para voltar ao local do musical, e, ao retornar, o show já havia encerrado. Deparou-se com a sua irmã, que lhe disse:
- Vamos embora. Vai chover. O tempo fechou, de repente. Ao ver o carrinho com o bebê e sem ninguém por perto, levou um susto, pois o local estava vazio, todo mundo já havia ido embora. Então, Uêda disse à sua irmã, Clotilde:
- O que vamos fazer com este bebê? Coitadinho, está morrendo de frio. Que mãe desnaturada! Esquecer o seu filhinho; deve ser uma desvairada! Uma maluca sem coração.
Saíram desesperadas para ver se encontravam a mãe da criança e nada. Depois de algumas tentativas sem sucesso, resolveram dar abrigo para o neném e o levaram às pressas com medo da chuva. Chegaram em casa, encostaram o carrinho num cantinho e foram dormir. Uêda, bom coração que era, caridosa, levantou-se, chamou a irmã e disse:
- Largue o sono pra depois, temos que dar guarida ao bebezinho, vamos banhá-lo, trocar sua fralda e dar uma mamadeira de leite bem quentinha, senão ele vai adoecer. Vamos dar carinho, o “bichinho” está todo encolhidinho, com frio. Está precisando de conforto e do colo da mãe. Sua irmã, arregalando os olhos como coelho assustado, disse:
- Não temos nada de bebê em casa! Uêda, severamente gritou:
- Clotilde, percorra a vizinhança e fale que nós estamos com um bebezinho precisando de ajuda, imediatamente. Grite por socorro se for necessário, pois precisamos de roupas, fraldas e leite. Vá, corra! Alguma boa alma vai nos ajudar.
Sua irmã saiu num piscar de olhos, como um furacão. Uêda, encarando o neném, se deu conta de que ele não se mexia, nem chorava. Era muito estranho aquilo. Foi aí que ela resolveu pegá-lo, tirar suas roupas, sua fralda e banhá-lo. Ao despi-lo, deparou-se com um corpo repleto de tumorzinhos purulentos... E pensou em voz alta: “Credo! Que nojo! Eu não vou pôr minhas mãos nisso, não...”. Enrolou a criança rapidamente com um lençol branquinho... E nesse instante, apareceu-lhe, em espírito, seu amigo Negreto, que lhe disse:
- Você prometeu me ajudar. Chegou o momento. Não desista agora, por favor!
Assustada, ela respondeu encabulada, de repente:
- Jesus Cristo! Você ainda vai me matar de susto desse jeito, aparece do nada, como um fantasma! Eu já lhe disse que não sei como posso ajudá-lo!
Negreto, com sua voz estridente, disse de sopetão:
- Sabe sim. Inconscientemente, já está me ajudando. Mas, não pode desistir agora. Essa criança é meu filho. Ele precisa de seu carinho e de sua ajuda, senão vai morrer.
Espantada, ela disse:
- Seu filho?!
Ele respondeu, firmemente:
- Sim. Ele é o meu filho, Tiziu. Assim que a minha esposa ficou sabendo da minha enfermidade, abandonou-me; fugiu como se fugia antigamente dos leprosos... e, uma enfermeira começou a cuidar de mim, e nos envolvemos, e dessa relação nasceu esse menino lindo e maravilhoso. Ele vai ser um “GANDHI...”, vencerá o mal com a espada do amor; será um novo grito de paz para a humanidade. Não o deixe morrer.
Uêda, de repente, foi tomada por uma força espiritual inexplicável. Pegou o bebê, desenrolou-o do lençol e o colocou numa bacia com água bem morninha. Negreto, acompanhando tudo, bem de pertinho, via sua amiga de infância cuidar do seu único filho querido. Conforme ela o banhava e passava as suas mãos santas, bem devagar, por cima dos tumores, eles desapareciam num passe de mágica. Sua fé o curou, e seu amigo em lágrimas lhe agradeceu, dizendo:
- Quando você vir alguém com dores ou qualquer tipo de enfermidade, toque as suas mãos santas no local da doença ou onde lhe disser que dói. Você estará ajudando a diminuir as dores e o sofrimento de muita gente desesperada, que não sabe a quem pedir socorro. Você é um espírito de cura.
De repente, Uêda, acordou assustada. Foi à Escola, e lá, recebeu a notícia de que Negreto havia falecido, coincidentemente, na hora em que ela sonhou com ele. Dessa vez, não comentou o sonho com ninguém. Passou a ser frequentadora assídua de sessões espirituais.
Outra noite, ela sonhou com o amigo, novamente. Este sonho desvendou mistérios: ela estava andando por uma estrada de terra com muita lama... Quando, de repente, apareceu em sua frente o seu amigo, dizendo:
- Você vai me ajudar de novo.
Ela respondeu-lhe:
- Agora não posso.
Ele insistiu:
- Preciso partir deste mundo terreno e, você, agora tem o entendimento espiritual e sabe o que isso significa. Você sabe a importância dessa despedida. Precisa ir hoje comigo na missa do sétimo dia e me enviar para a outra dimensão. É só me levar diante do altar e me entregar em oração nas mãos dos anjos.
Ela o encarou, e percebeu que ele estava ali, como uma sombra em forma de homem. Um vulto vestido de túnica branca, descalça. Ela, imediatamente, olhou para si mesma, meticulosamente e disse:
- Olhe para mim, meus trajes, estou parecendo uma mendiga, suja e maltrapilha, não posso de jeito nenhum entrar na Igreja. Assim, o padre Ângelo, jamais vai permitir que eu adentre aquele recinto sagrado, a casa de Deus, deste jeito!
Ele, calmo, disse à sua amiga:
- Ah, você vai, sim! Vai me levar até o altar da igreja... hoje é a chance que tenho de me despedir deste mundo, como determina a lei lá de cima. Se não fizer isso por mim, minha alma vai ficar vagando e não terei paz, nem a oportunidade de me reencarnar de novo. Serei o seu bisneto na próxima vida... por isso, somos o que somos!
Não deu tempo de ela replicar... de repente, do meio do mundo, emergiu daquela terra de lama uma Igreja Monumental, num espetáculo cinematográfico, jamais visto pelos olhos do homem. Uêda ficou estática, assombrada, diante do grande edifício e, viu muita gente em espírito adentrá-la. Não tinha idade, nem sexo; tudo era paz e cântico dos céus, e disse:
- Nossa! Meu amigo, eu pensei que... Mas, meu Deus, que maravilha! Como é linda! Mas, não sou digna de pisar num lugar sacrossanto desse, é lugar sagrado. É a verdadeira casa de Deus. Sinto-me suja.
Negreto disse:
- Você é um ser de luz, especial, por isso, todos já lhe conhecem. O tempo aqui não tem relógio... muitos desses espíritos já foram seus filhos, seus netos, seus pais, irmãos e parentes... Logo, não tenha vergonha de nada. Muitos, como eu, foram ajudados por você.
Uêda pegou na mão do amigo e o levou diretamente para o altar da igreja do Céu, e lhe disse:
- Descanse em paz! Sua missão está cumprida. Vamos nos ver em breve.
Ao sair da igreja, viu um espírito lhe acenando e dizendo:
- Mãe, tudo tem uma razão de ser e uma vontade do Criador, incontestável. Ninguém é culpado da morte de ninguém. Deus deu o livre-arbítrio para toda a humanidade, logo, o último suspiro é determinado por Ele. Por isso, a morte na terra tem muitas facetas.
Uêda entendeu o recado, porque havia perdido um filho, ainda muito pequeno “naquela encarnação...”, e carregava na alma o peso de culpa, o que, por muito tempo, foi um pesadelo em sua vida. Portanto, compreendeu, naquelas palavras, o significado de sua missão. Acordou, conscientemente, e passou a olhar para todo o ser-humano com os olhos do amor e o coração de Deus.