Voz da Razão
Voz da Razão
Estávamos, e estou certo disso, pois jamais escreveria tal coisa se a certeza não fosse inabalável, na beira de uma estrada reta, aplainada, cujo fim parecia o próprio horizonte. Exatamente ao meio dia ela passou. Qualquer um no meu lugar teria feito o mesmo.
- Ei! – exclamei – que negócio é esse de terceiro mandato? E essa confusão no senado?
Ela tem olhos grandes e timbre adocicado quando pronuncia qualquer sujeito, objeto ou verbo.
- Senado? Terceiro? –arregalou os olhos – não estou sabendo disso. Ah, sinto-me cansada. O que você está comendo?
- Salgadinhos.
Comemos.
- Ai, ai – suspira ela – pensei que com esses óculos escuros passaria despercebida. Que idade você tem? Não, não diga, deixa eu adivinhar. Humm...idade suficiente para me reconhecer, sim é isso. E provavelmente vai me encher de perguntas.
- Ôa...pera lá! – exclamei - não é só porque ostentas esse emblema que irás acertar tudo. Há muitos anos atrás, quem sabe, eu teria lhe enchido de perguntas. Mas agora, humpf, erraste por anos luz...
- Anos Luz mede distância meu amiguinho – volveu ela – e não tempo. Tem mais salgadinho?
Comemos.
- Você acha que estou gorda?
Fiz um esforço enorme para não responder e fiquei mirando a perspectiva da estrada. Onde iria dar?
- Você está bravo? Vou te dizer uma coisa, pararam de me solicitar em...deixe ver...tenho isso anotado aqui na minha bolsa, só um instante, sim?
Ela pegou um monte de papeizinhos amarfanhados, franzia o cenho para eles tentando achar o que procurava, por fim desiste, diz que tem uma consulta com o oftalmo amanhã e me pede para ler um deles. Em voz alta.
- Os judeus eram proibidos de sentar na Câmara dos Comuns até 1852? O que isso quer dizer? Que ninguém a reconhece desde essa data?
- Evidente que não – responde ela arrancando o papel da minha mão – se assim fosse teríamos outra sorte. Pra você ter uma idéia, vou te mostrar uma coisa...calma!
Eu havia caído para trás, de susto. Ela sacara um revolver da bolsa. Percebi que eu estava me movendo como um crustáceo.
- Calma – disse ela – é de brinquedo. Quer dizer, quase isso, na verdade ele dá choques. Mostrei só pra você ter uma idéia, pois quando apareço, quando alguém me reconhece, qual, ficam tão alterados, as vezes tenho de me defender. Pode ficar sossegado, olha, já estou guardando. He,he, você parecia um caranguejo. Já te contei que em alguns locais, os caranguejos sobem nos coqueiros, soltam o coco, depois conseguem abri-lo e então...Tem mais salgadinho?
Comemos.
Ela. De boca cheia, explana:
- A vida é uma grande luta. Quando não é o pão, são as emoções, os pensamentos, o dia a dia, ai, ai (suspira), é necessário um treino fenomenal para se estar vivo...
Que lascada, pensei, por que fui me meter nessa estrada?
- Por lhe parecer tão aplainada... – disse ela – oh, meu caro, não me olhe com essa cara. Tive de me adaptar, entende? Porque ninguém, ninguém mais, pedia um pouco de juízo em voz alta. Como se isso fosse uma vergonha. Então passei a ler as mentes, e em seguida passei a soprar-lhes nos ouvidos algum senso. Ou qualquer senso. Sempre é melhor do que nada.
“Nada, nada, nada, nada...” cantarolei comigo mesmo, automaticamente. Ela emendou:
- “Do que eu esperava encontrar...”.
Qualquer um no meu lugar teria se irritado.
- Desculpe – disse ela – foi irresistível. Tem mais salgadinhos?
Comemos. Teríamos continuado a comer, se ela não falasse:
- Eu já fui assim...
- Assim como?
- Contida, perdendo oportunidades...
- Amham – pigarreei – então você se considera uma oportunidade?
- Bom - ela assoprou as unhas – pelo menos eu não sou A Voz da Emoção. Aquela, sabe, que atua do outro lado do cérebro.
- Bem, amiguinha – disse eu sarcástico – pelo menos eu não sou um computador.
- Com certeza não – fez ela, soprando as unhas da outra mão – computadores obedecem os programas.
Xingá-la mentalmente, depois de ter pensado um pouco, seria uma opção.
Tolice. Ela emendou, enquanto tirava um espelho pequenininho da bolsa.
- Percebe agora porque ando precavida? Bem, meu amiguinho, devo ir andando. Sendo o que sou, resta te dizer uma coisa, mesmo que não tenhas perguntado. Daqui pra frente, a questão não é mais na base do aqui ou acolá, do plano A ou do plano B, deste ou daquele caminho. Conseqüências sempre surgem. Daqui pra frente, trata-se de se manter firme naquilo que você, conscientemente ou não, escolheu.