O BELO CASARÃO

Ele foi a paixão da minha infância, da minha adolescência.

Na mocidade descobri que guardava pedaços de mim entre aquelas paredes.

Hoje em dia, quando o olho, chega a me doer o abandono em que se encontra.

Muitos detalhes já me escapam, me fogem da lembrança; enquanto outros não se apagam nunca.

Olho a janela, a primeira do lado esquerdo da sacada e vejo um rosto que o tempo não carregou de mim. Há quantos anos ela se foi e vejo o sorriso ali como naqueles tempos.

Em seus últimos anos de vida nós conversávamos quase todos os dias. Eu, lá embaixo na calçada e ela debruçada na janela.

Gostávamos de nos falar. Havia tanto assunto.

Éramos nascidas no mesmo dia e mês, com diferença de tantos anos, porém.

Talvez por este motivo tivéssemos afinidades.

O casarão continua belo, apesar de necessitar de umas reformas. Quando o olho agora me vem à mente a sala imensa, com o assoalho largo, os móveis escuros. Aquele quadro de Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Posso vê-lo lá na parede perfeitamente.

E posso ver da sala o quarto onde dormia o padrinho de minha irmã. A última imagem que guardo dele é a que vi quando estava encolhidinha numa cadeira. Ele roncava de boca aberta e me assustei um pouco com a cena, porque eu era muito menina ainda e ele estava muito magro e pálido.

Que homem maravilhoso! Como enfeitou a minha infância!

Posso ouvir a voz fanhosa.

Posso vê-lo tomando minha mãozinha e colocando um dinheirinho nela. Ele não era capaz de presentear a afilhada e deixar-me só a olhar.

A cadeira! Eu posso vê-la. Eu ficava estática mastigando docinhos de leite tão duros. Mastigava lentamente olhando tudo, como que para guardar para sempre na memória.

Nunca na vida estive tão quieta em lugar algum, a não ser naquela sala.

Da cozinha guardo algumas lembranças, mas são tão vagas. Um fogão e as panelas sobre ele.

Agora a varanda. Essa eu posso vê-la de novo com as trepadeiras róseas.

Sombreava tanto a casa aquela varanda imensa!

O quintal que guardo na lembrança não é o mesmo que posso ver da rua agora. Era um jardim imenso e está tão mudado.

Era lindo com tantos canteiros de flores variadas. As roseiras encantavam-no. Lembro-me dos canteiros de flocos, de petúnias, de chuva de prata.

E havia o tanque de água bem no meio do jardim, sob o caramanchão.

Eu assistia os pássaros se banhando, se esponjando ou simplesmente tomando água.

E quantos beija-flores e as borboletas havia por lá!

Mais no fundo do quintal ficava o galinheiro. Nunca vi em minha vida outro mais chique e higiênico.

No fundo do quintal que dava fundo com outra rua, havia árvores frondosas.

Engraçado, sempre desejei entrar de novo naquele casarão. Queria buscar alguma coisa minha que lá ficou.

Queria resgatar um pedaço de mim, não sei bem o quê.

Mas é um sonho impossível. Não posso chegar no atual proprietário e dizer que uma menina um dia andou por lá e viveu momentos que gostaria de reviver.

Não posso dizer que sinto desejos de estar naquela sala de novo. Envolta em silêncio, mastigando docinhos, com os olhos pregados no magnífico quadro.

Queria agora, com a compreensão dos anos, rever cada aposento. Caminhar pelo quintal e tentar entender a razão do casarão me fascinar deste modo.

Queria entender porque o guardo n’alma como uma relíquia, porque o tenho como uma coisa sagrada.

Pensando bem, não devo mais entrar lá. O que guardo não se acaba em mim. Olhando-o de fora posso ver os detalhes todos que guardei.

E mesmo que nem o veja mais por fora ele continua intocável em minhas lembranças e mais belo que nunca.

Soninha

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 16/01/2005
Reeditado em 24/03/2011
Código do texto: T1724
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