O gerador Alfa
O gerador Alfa
Amarrado a cadeira, Júnior se debatia compulsivamente, na tentativa inútil de tentar se libertar. Os pulsos marcados doíam mais a cada vez que ele tentava se mover. O prisioneiro não fazia idéia do que iria lhe ocorrer nas linhas seguintes de sua vida escrita, assim como o autor de sua saga desconhecia o rumo que daria para a seqüência de fatos. O som dos passos do personagem ecoava em tom de ameaça, apesar de sua origem ser desconhecida. Por mais que o escritor se esforçasse, não encontrava solução para o problema de Júnior. O livro já ultrapassava a ducentésima nonagésima página, próxima ao fim. Seria difícil, até mesmo em letras criativas, que existisse como o herói escapar.
A sombra de seu tão temido oponente o cobriu parcialmente, para desespero do rapaz. Ao contornar o assento, o perigoso Juiz Ferreira pôde ser visto pela primeira vez: tratava-se de um senhor baixinho e desajeitado, com sobrancelhas grossas e grisalho, além de possuir uma “clareira” de calvície no topo da cabeça. Para o redator, foi desconcertante apresentar o maléfico Juiz como sendo uma figura de aparência tão indefesa, descrito em duas linhas muito desapontadoras para quem esperava mais, já que o velho interceptou tantos atos de heroísmo ao longo do romance.
- Finalmente! Agora acabo com você, seu jovem insolente e impulsivo.
Puxando uma adaga de cabo brilhante do bolso interno do casaco, Ferreira abriu o mais amedrontador dos sorrisos, para então levantar o instrumento e revelar uma silhueta distorcida, representada pela sombra na parede que refletia as luzes de uma forte seqüência de relâmpagos. Enquanto escrevia, o autor já podia construir a cena em sua mente de forma tão viva que ele próprio compartilhava o medo com Júnior. O escritor tentava expressar, de todas as formas que seu vocabulário permitia, o quão clássico deveria soar aquele momento. As imensas janelas empoeiradas, a sombra dos dois no momento que precedia o fim do mocinho, o punhal detalhadamente ornamentado, o jovem com as pernas e braços amarrados a cadeira pesada, o velho aproximando a lâmina da vítima... Realmente estava sendo um momento de alta tensão.
Com pavor, fechou as pálpebras e contraiu-se todo, num reflexo instintivo, tentando não presenciar a fração mínima de segundo que vivenciava, ou melhor, o tempo suficiente pra sentir os primeiros milímetros de lâmina enterrada em seu peito. Com a dor, o jovem abriu os olhos aos gritos para então notar o que se passava:
- Natália, como você sabia... - foi interrompido por sua salvadora.
- Agora não há como explicar. Temos de sair daqui com cuidado, pois o prédio está cercado.
A moça golpeou o Juiz na nuca, usando um pedaço de madeira, bem a tempo de evitar que a faca enterrasse por completo no peito da vítima. Após pensar na solução inusitada, num golpe de memória repentino, só restava ao escritor pensar na fuga do casal, afinal de contas, Ferreira teria levado o rapaz para uma fortaleza cercada de capangas. Alguns minutos, que mais pareciam horas, foram o que bastou para que houvesse uma solução para o, agora casal, de heróis.
Enquanto tomava um café estupidamente quente, o escritor relia as linhas entusiasmadas que descreviam a epopéia. Para ele, o capítulo final já estava terminado. O profissional satisfeito imprimiu suas páginas de encerramento e correu para o prédio da editora.
Em sua luxuosa sala, reunido com uma equipe de revisores, o velho Guimarães discutia sobre a aprovação daquele final tão intrigante...
Após desamarrar Júnior, Natália puxou-o pelo pulso até a porta, para então espiar se alguém vigiava o corredor. Para a sorte dos dois, o guarda cochilava despreocupado, com farelos de pão sobre a enorme barriga. Com a cautela de quem pisa sobre o gelo fino, os dois passaram pelo vigia adormecido e viraram à esquerda, seguindo em direção às escadas de emergência. Evitando o máximo de ruído, desceram até o corredor de acesso ao salão principal do prédio, onde observaram a presença de muitos guardas atentos. A moça pediu para que ele se abaixasse, o que o rapaz obedeceu sem objeções. Estranhamente, ela foi na direção dos guardas, em disparada, sendo então seguida por todos até o lado de fora do prédio. Junior, agachado junto à parede do corredor, nada via do que se passava, restando-lhe apenas perceber o som de alguns disparos de armas de fogo. Sem saber o que fazer, temendo pelo pior, o jovem herói correu para fora, mas foi interceptado por Natália, dentro mesmo do salão. Ela já estava de volta, abaixada, perto do balcão das telas do circuito interno de segurança. Abraçaram-se calorosamente. Ele nem mais questionava a estranheza da capacidade que a moça apresentava em despistar os guardas, reservando, em sua cabeça, apenas espaço para a felicidade de revê-la.
Munidos com armas, recolhidas do balcão de segurança do salão principal, Júnior e Natália correram livremente pelo imenso gramado da propriedade, ziguezagueando entre as árvores que compunham o cenário frontal da mansão. Quando chegaram ao portão principal, apenas uma guarita os separava do mundo exterior. Num acesso de testosterônico de vigor e vontade de viver, o rapaz puxou sua acompanhante para trás de uma árvore, direcionando, em seguida, a pistola na direção do guarda do portão e puxou o gatilho, acertando-o no braço esquerdo. O vigia respondeu sacando também seu revólver e rolando no chão, numa tentativa de ação defensiva. Os dois se alvejaram cegamente, até que Júnior, mesmo tendo sido baleado na perna, conseguisse acertar a cabeça de seu oponente. O casal correu de mãos dadas até a saída, ao passo em que os outros capangas já podiam ser avistados sobre o gramado, atrás do casal, gritando ordens de interceptação e atacando com fogo armado.
Após a fuga bem sucedida, enquanto dirigia um carro roubado, Natália perguntava ao jovem sobre a dor do ferimento à bala, tendo nada dramático como resposta, já que Júnior estava mais preocupado é com estar longe daquele lugar. Ela alternava entre olhar a estrada e retornar a face umedecida em lágrimas para Júnior, esboçando comemorar o resgate de forma silenciosa. A cada minuto na estrada, maior era o alívio sentido. A moça dirigiu por horas, até que sentiu-se segura o bastante para estacionar num motel isolado da estrada e cuidar do ferimento de seu parceiro.
No quarto, sem o mínimo luxo, a calça jeans de Júnior foi cortada, cuidadosamente, para que ela tivesse acesso a área da perna onde seria feito o curativo. Com habilidade, apesar de uma amadora no assunto, as mãos femininas retiraram o fragmento do projétil com sucesso, utilizando nada mais que uma pinça para extração de pêlos, a qual foi antes esterilizada em vodka barata. O curativo foi feito. Exaustos, os dois se deitaram, trocando olhares até que Morfeus lhes induzissem a um sono profundo.
No alvorecer do dia, a luz parca que invadia as frestas da janela já permitia a visão do recinto, ou pelo menos o necessário para que Júnior entendesse o que se passava. Amarrado à cama, ele via-se novamente numa situação de perigo. As roupas do jovem haviam sido retiradas e sobre sua barriga jazia uma adaga, a qual já era muito bem conhecida. O rapaz gritou pelo nome de Natália durante horas, mas o único que o atendeu foi o dono do estabelecimento. O idoso, que era quem havia alugado o quarto pessoalmente, ficou pasmado com a cena e ajudou-o a se livrar das cordas que o prendiam à cama antes de esclarescer a dúvida de Júnior: a moça havia abandonado o local no mesmo carro em que chegaram, no meio da noite. Já imaginando onde obteria respostas, o rapaz vestiu-se com as mesmas roupas rasgadas e saiu. Ele teria um encontro com o velho Juiz...
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Sentado à cabeceira da longa mesa, o Juiz soltou uma gargalhada de satisfação.
- Eu pensei em tornar as coisas mais interessantes. Quando meus guardas perceberam-na abandonando-o, reagi a isso de uma forma menos previsível. Eu precisava ver sua cara de palerma ao se dar conta do fato – disse, o Juiz, enquanto levantava seu frágil corpo da poltrona imponente.
Parece que, nesse ponto, o autor dessa história pensou numa resolução um pouco fora do contexto, porém, buscando imprevisibilidade. Ao longo do inflamado diálogo entre o maléfico ancião e Júnior, as reais intenções e laços de afinidade passaram a ser surpreendentes.
- Sua filha? Como pode ser? - inquiriu, o rapaz, aos berros.
- Isso mesmo! Ela é minha filha e, na verdade, queria o mesmo que eu: o seu segredo.
- Eu não tenho o que revelar...
- Tem certeza? Que me diz das invenções de seu professor, o antiquado Horácio.
- Então... Você iria me matar por...
- Seu estúpido! - interviu, o velho – Eu ia te torturar até saber a verdade. Quero o projeto do gerador Alfa, ou seja, o mesmo que ela deve ter roubado de você.
Um frio correu a espinha de nosso heróico protagonista. Ele tateou o bolso, na tentativa frustrante de encontrar o cartão de memória com as informações que guardava, revelando então a si próprio o quão patético havia sido a tentativa de tortura, quando só havia necessidade de revistá-lo para achar tais dados.
- Aquela atrevida apaixonada terá de voltar... - amaldiçoou, o Juiz, reclamando da pancada que tomara de sua própria filha no pescoço.
O argumento da história, segundo o autor, em resumo, era que Natália realmente desejava ter Júnior a seu lado, mas nem isso a impediu de roubá-lo. O pai da moça o mantinha vivo na expectativa de que ela retornasse para salvá-lo novamente, contudo, estava preparado para que ela não fosse embora, ou que pelo menos não fosse sem deixar o que ele próprio, o juiz, alemjava.
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Enquanto o editor relia, pela terceira vez, o momento definitivo da aventura, pensava se aquilo realmente estava digno do brilho das histórias que, por ele, já tinham sido aprovadas. Ao mesmo tempo em que se sentia empolgado com a emoção da saga, algo em sua cabeça indicava uma peça fora do quebra-cabeça.
Minutos após algumas coisas já terem sido esclarecidas, dois brutamontes a serviço do velho entraram na sala, carregando com eles a linda Natália. Ela se debatia enquanto eles a seguravam, para então jogá-la ao chão e marcarem vigia na porta da luxuosa sala. Júnior e ela se entreolharam ao som da frase sarcástica do Juiz Ferreira:
- Que cena mais comovente! Minha filha, você normalmente me decepciona na escolha dos seus afetos, mas me deixou muito feliz no que eu posso lucrar com esse.
O rapaz, tramando mentalmente um plano de fuga e recuperação dos dados furtados, tremia as órbitas a observar os detalhes da sala, mas sem deixar de passar seus olhos por aquela que, agora, tinha como sendo uma traidora.
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Enfim... Um pouco a contragosto, o editor Guimarães resolveu por estar satisfeito com o final nada surpreendente...
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- Filha, obedeça seu pai e me passe o que é meu por direito.
A moça fez um gesto afirmativo com a cabeça e se abaixou, pousando a mão sobre sua bota e abrindo um zíper. Júnior, inconsolável diante da catástrofe que aquilo poderia derivar, observava tudo, apático. O velho Juiz Ferreira chegou perto da filha, com o braço esticado à frente, mas foi surpreendido quando ela retirou um canivete da abertura em seu calçado, pressionando-o contra o pescoço do próprio pai.
- Liberem a sala ou eu o mato – disse, Natália, aos guardas que estavam na porta.
Um brilho de esperança brotou nos olhos de Júnior ao acompanhá-la quando passaram pela porta afora, rumo ao corredor de saída, mantendo o velho como refém. Ao descer os últimos degraus de entrada do prédio, o casal se comunicou através de olhares rápidos; ela jogou o pai contra o gramado e os jovens entraram ligeiramente no carro estacionado atrás de si. Os projéteis ricocheteavam por todos os lados enquanto o veículo tomava cada vez mais velocidade, até se chocar violentamente contra o portão, atravessando-o. Eles estavam fora, novamente.
Durante uma breve discussão, Natália Ferreira olhou o espelho retrovisor, apreensiva, explicando que havia deixado os dados com o Professor Horácio. Ela temia por terem-na seguido antes, o que acarretaria em perigo para o portador das informações.
Chegando ao laboratório, os jovens viram uma cena inesperada. Horácio estava sentado na sua velha poltrona, fitando os cacos de plástico e silício espalhados sobre a mesa. Com o martelo na mão, ele repetia:
- Agora isso nunca cairá em mãos erradas.
Natália deu suas devidas explicações a Júnior e a história seguiu o rumo já previsto por todos: Eles se casaram.
Aquela não era a única amostra dos dados tão valiosos, mas ninguém precisava saber disso. Horácio continuou a pesquisa e todos continuaram sem saber no que consistia, exatamente, esse tal de “Gerador Alfa”.
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Alguns anos depois, com o livro já publicado, Guimarães ainda se perguntava: Por que tinha necessidade dela amarrá-lo no motel? Essa, além de muitas outras perguntas sobre a história, assombravam-no às vezes. Para tais coisas, ele talvez nunca saiba a resposta. Só se sabe que o livro vendeu muito bem e esse autor continua fazendo essa editora feliz.