"O EMPRESTÔMANO (ou a Teoria Afetométrica de Anacleto Alves)"

Recebi, ontem, do meu amigo Afrânio Meira, alguns livros e periódicos que me pertenciam. Disse-me, ele, que se tratava de uma “simples devolução”. À minha pergunta “O que é isso, Afrânio!?” respondeu-me, sem cerimônia: -“São seus. Eu os estou devolvendo.” Ao que repliquei, estupefato: -“Mas... por quê, se eu não os pedi!?” Ele arrematou: “Ora, por nada... Já os li. Achei que, talvez, você pudesse precisar...”

Engoli. Fiz que aceitei a justificativa. E não disse nada. Mas, internamente, sei que nunca mais nos veremos outra vez, salvo naqueles encontros casuais em que pessoas educadas trocam rapapés e exibem a dentadura.

Ora, desde então, venho me perguntando: Por quê? O que teria feito eu ao Afrânio para merecer tamanha desfeita? Terá sido algo que disse? Alguma intriga de terceiros, talvez? Bem, é certo que o meu amigo... ou seria mais apropriado dizer ex-amigo, Afrânio, zangou-se e preferiu assim dar cabo à nossa amizade.

Com Antonica foi da mesma sorte. Éramos, com efeito, muito amigos. Eu ia sempre à sua casa. De modo que, além de alguns livros e álbuns, cheguei a emprestar-lhe, certa vez, uma chave de um velho baú meu que, por coincidência, abria também um armário dela, cuja original estava perdida. Ora, e não é que a mocinha teve a petulância de mo devolvê-la, e com a cara mais dissimulada: “Obrigada, mas, é que não a uso mais. Papai providenciou outra, e, depois, o senhor podia estar precisando...” Precisando... precisando... e quem precisa de uma chave de baú hoje em dia? Nunca mais trocamos palavra.

Sei que muitos leitores incautos e não já tão tristemente amadurecidos pela insensibilidade das pessoas, e por desapontamentos em matéria de amizade, veriam nesses fatos tão somente provas corriqueiras de cordialidade, e (porque não?) de agradecimento.

Mas, eu, Anacleto Alves, macaco velho, profundo conhecedor da alma humana e, sem falsa modéstia, um verdadeiro cirurgião de caráteres, só posso diagnosticar isso como uma cabal, insofismável e simbólica ruptura de afeições. E da espécie mais cruel e cínica!

Mas, assim tem sido, desafortunadamente, ao longo da minha já não tão curta vida: Amigos? Confesso, os faço sem muita dificuldade. Aí vão conversas, lá afinidades, acolá camaradagens, mais adiante, cartas... É natural que troquemos alguns objetos... Livros, inicialmente, por empréstimo. Daí a mais um pouco, uma palavra errada, um olhar infeliz, sabe-se lá Deus o quê... e pronto: Sou chamado a receber de volta, simbolizada em objetos, a minha sincera e dedicada amizade que já não lhes serve como antes. É, ou não é, senhores, uma ruindade do destino?

Com Anita, então, a coisa foi ainda mais cruel. Rapariga guapa, prendada, de boa família... Ficamos mesmo, devo dizer, muito íntimos. Tanto que ela me fez seu confidente. Passeávamos, bordávamos juntos, e coisa e tal... Mesmo sem entender bem dessas coisas, posto que, sou... bem... como hei de dizer...? Ahn... um solteirão convicto, cheguei a julgar que lhe devotava mais que pura amizade, e, nesse enlevo (éramos, ambos, jovens e tolos), fiz-lhe o chamego de um anel – por empréstimo, é claro . A moça, ora, ao saber (só Deus sabe o porquê), apoquentou-se e deitou a jóia porta a fora, quase alvejando a pobre cadela Aprígia, que eu também lhe emprestara.

Depois de passado o caso, meditando, recostado em minha velha cômoda (isso, antes de emprestá-la ao boticário), deduzi que talvez ela preferisse que o anel lhe fosse doado.

Doá-lo, eu? Ora, mas, que absurdo! Sem emprestá-lo, como poderia comprovar a sua afeição?

O fato é que quase não me restam mais amigos. Estou condenado, repito, condenado ao suicídio social. Felizmente, à custa de muito investimento e afagos, alguns poucos ainda me devotam algum apreço. Revelo-os, aqui, por saber ser o leitor idôneo e, além disso, dotado da mais alta discrição.

Pois, aqui vai a lista: Um é o Aristeu, Aristeu Fontes, bom alfaiate, bom sujeito, bom amigo. Fiz-lhe o agrado da coleção inteira de Cervantes, por empréstimo, já lá se vão mais de dois anos, e o danado quando me vê nem toca no assunto. É ou não é um amigo fiel?

Outro? O Armandinho, o peralvilho, o filho do velho Alcindo, o barbeiro. Emprestei-lhe minha casa de praia em Mangaratiba, há mais de dez meses, e o moço, mostrando devoção à minha amizade, parece que não sai mais de lá! Nem lhe passa pela cabeça devolver as chaves. Gente como essa, sabe dar o merecido valor a uma amizade.

Querem saber de outros? Pois, aqui vão, em duas palavras: Altair, um gato Angorá e a coleção completa de “O Malho”. Armindinha, um retrós de linha francesa, dois pares de luvas que eram de minha avó e uma fruteira de porcelana Ming. Aníbal Moreira, um sofá, três cadeiras, um tílburi e minha certidão de nascimento (sabe-se lá para quê...). Abigail, um arco de rabeca, dois papagaios, a dentadura do querido finado tio Athus, meu pince-nez, duzentos contos de réis...

E, por aí vão, esses, meus verdadeiros amigos... Até que se abata sobre mim a velha maldição, que sempre se repete, mantenho-os ali, na mira da minha amizade. E, sem perder de vista a boa e infalível lei da concretude das afeições, empresto, sim, sempre. É essa, afinal, a única maneira de aferir o quanto nos amam!

E se alguém, na posteridade, de minhas palavras extrair um bom conselho, que bom uso lhe faça, sem medo. Pois, se é verdade o que diz o adágio popular: que “conselho não se dá”, não fujo à regra: Não lhes dou. Empresto!

Agora, se me permitem, vou arrematando o escrito que a tinta já está no fim, pois o tinteiro... emprestei-o ao padre Anselmo que (Santo homem!) não mo devolveu...

Rio, 02/01/2003

(Segundo Lugar no Concurso "Além das Palavras" Litteris Editora 2004

Antonio Sciamarelli
Enviado por Antonio Sciamarelli em 08/06/2006
Código do texto: T171935