Encontro
1.
Engraçado o quanto colaboramos com o acaso, o quanto colaboramos para que as coisas assim aconteçam (ou se pareçam). Ficam mais belas com o acaso, mais pitorescas. Passar por baixo de uma árvore, que serve de poleiro para os pombos do centro da cidade, é pedir para tomar uma bela cagada e botar a culpa no acaso, no azar ou na sorte, sei lá.
Bom, meu caso é que tenho uma paquerinha na biblioteca da faculdade, trabalha na sala de informática, monitorando. Sempre sorrimos um para o outro, perguntamos se está tudo bom: os dois perguntam ao mesmo tempo, também respondemos juntos. Até ontem esses tinham sido nossos mais longos diálogos. Depois, sorrimos e abanamos a cabeça (eu a abaixo, e suponho que ela também abaixe), mas não sabemos nossos nomes, nem qual curso fazemos e tão pouco nossas utilidades para a sociedade.
Há algum tempo, encontrei-a num bar no bairro onde moro. Eu estava com um amigo vendo um jogo de futebol desses à noite, e ela acompanhada de amigos, quatro na verdade, e uma amiga. Ficamos ali algumas horas, mas nossa disposição não permitia troca de olhares; apenas pesquisa comportamental. Os homens de sua mesa não se interessaram por futebol, coisa que me deixa sinceramente preocupado: não que ponha em xeque a sexualidade deles, mas será que suas vidas têm tanto sentido assim a ponto de não acompanharem futebol? Nem quando iam ao banheiro espiavam a TV. Preocupante.
Mas fato é que nesse dia ela bebia cerveja. Outro ponto que mostra um pouco o que as pessoas têm embaixo de suas máscaras. Uma mulher que sai para beber com amigos em um bar freqüentado por defuntos telespectadores me agrada muito, pois não tem preocupações ambiciosas para ficar maquinando, não procura nada ali senão as pessoas que estão à sua volta. Tem a humildade, não é envaidecida etc. Isso me agradou bastante, aumentou meu fetiche por ela.
No dia em questão, no caso: ontem, fui usar a sala de informática, coincidentemente no turno dela. Chegando lá, olhei pela janela de vidro da porta, ela estava lendo numa mesinha e havia dois computadores vagos. Voltei pelo corredor e fui ao banheiro, depois bebi água. Retornei à sala e entrei, seguido de outro rapaz. Dessa vez havia apenas um computador vago e, como eu queria verificar em minha mochila se esquecera algo, deixei-o passar na minha frente. Nos cumprimentamos como de costume, sentei em um banco de espera, desses que cabem três pessoas, e quase entrei dentro da mochila à procura de algo, ou falta dele, à procura do fio da meada. A pergunta inicial seria o curso que ela fazia, na faculdade, tudo se iniciava ai. Ela ficou algum tempo olhando em minha direção, não para mim. Fato foi que percebi que sua leitura não era tão interessante assim, mas não consegui descobrir o assunto que se tratava, com rápidas e despretensiosas olhadelas.
Achei-o, enfim, dentro do caderno de fichamentos de filosofia-da-pedagogia. Já tinha o principio do assunto. O diálogo se passou mais ou menos assim: “É... deixa eu perguntar, você faz psicologia?”. “Não... faço música”, ela respondeu, sorridente. Posto que eu só expressasse um: “Ah...”, ela prosseguiu: “Porque?” “Não, por que tô procurando um tal de Alexandre, o Pato, da psico, e não sei porque pensei que você fizesse psico, daí como ele é um dos poucos homens de lá, achei que poderia conhecê-lo, ainda mais por que ele é um dois poucos homens-homens de lá...” esbocei um risinho, que se expandiu ao ver que ela rira, embora a piada fosse, reconhecidamente, sem graça. Ela enfatizou, em meio ao riso, que não conhecia nenhum Pato e, como eu previra que assunto iria morrer quando nossas risadas já esfriassem, continuei – embora ache imensamente difícil falar e pensar ao mesmo tempo, gosto de repetir diálogos prontos o máximo que posso, assim somente tenho o trabalho de adequá-los à situação, e incrementá-los. Mas como o acaso me pusera naquela situação. “É que eu entrei em um grupo de estudo orientado por um professor da psico, e esse Pato também está lá, mas estou em dúvida sobre o artigo que será comentado na próxima reunião... só sei que é sobre ‘a identidade no mundo contemporâneo ou pós-moderno’, já li um artigo a respeito e é bem interessante, por incrível que pareça!”, conclui. Ela: “Nossa, parece ser interessante sim... explora conceitos sobre o homem atual, vem daí ‘identidade’?”. “É. Li o artigo: ‘a questão do ser em Quero Ser Jonh Malkovich’. Daí o autor expõe alguns conceitos que caracterizam o homem contemporâneo... Você já assistiu esse filme? é de 2.000, acho”. “Não, não vi não”, respondeu melancólica, com as sobrancelhas franzidas. “Pois é muito bom. Depois de ver o filme duas vezes, fuçando na internet encontrei esse artigo. O filme você tem que ver, mas o artigo expõe o homem de hoje como um colecionador de sensações, tendo uma identidade fragmentada sabe, sendo muitas vezes ao dia outras pessoas e sentido, literalmente, como elas, daí o colecionador. Todos nós criamos várias personas, e atuamos também. Um exemplo disso é o escritor: ele vive as situações que a personagem vive, é a única forma de criar, ele sente o que ela sente. Pesquisas em neurociência demonstram que viver algo, ou se imaginar vivendo algo, despertam as mesmas áreas do cérebro e causam as mesmas sensações físicas, sentimentos, é atuar. Para o cérebro, não há diferença entre o que os sentidos captam e a imaginação” “Nossa, que viagem...”, ela respondeu, meio atordoada, e continuou: “é mesmo, não posso dizer que sou a mesma pessoa aqui na faculdade, e na minha cidade, quando vou ver meus pais, meus amigos...”. “Então, quanto em mais círculos sociais você se associa, parece que é maior o número de ‘você’ que se tem de criar. O autor associa isso ao fato de vivermos em constante processo de adaptação conforme mudamos de ambientes, sempre nos reinventado. Ser você mesmo virou meio démodé hoje em dia!”. Disse essa ultima frase em tom meio irônico, e dei uma risada discreta. Ela também sorriu discretamente, e concordou. Eu já estava farto desse assunto, resolvi por fim, antes que essa minha máscara caísse. “E daí vai toda uma viagem. Vê o filme, lê o artigo. Não sei se faz bem saber de certas coisas, às vezes é mais seguro escolher uma mentira e acreditar nela. Vestir sua máscara de manhã, achando essa sua personalidade e pronto. Se numa dessa de querer ficar formulando conceito sobre tudo e deduzir logicamente você chegar à conclusão de que isso tudo é imenso dum teatro, ou jogo de xadrez no qual se é uma peça apenas, programada para ter sensações, interagir e se reproduzir... você não terá outra solução senão uma super-dosagem de Prosac!” . Ela apenas respondeu com um ‘credo’, mas afirmou ter vontade de conhecer mais sobre o tema. Anotou o nome do filme e o nome do artigo. Me perguntou qual filme mais a indicaria. Falei-lhe mais dois filmes, acrescentando que um deles seria difícil de conseguir, por ser uma produção japonesa.
Bom, o importante que cumpri meu intuito que era impressioná-la. Tem lá suas vantagens ter um pouco de cultura. Cada um cultiva suas habilidades. Tem uma teoria econômica, formulada por Ricardo, conhecida como ‘vantagens comparativas’. Nesse clássico raciocínio sobre comercio internacional entre países, ele conclui ser a melhor estratégia para cada um especializar-se na produção e exportação em que tem maior eficiência, importando os demais, mesmo que o preço desse bem seja menor que os a serem importados, pois, quando fizerem o comercio e trocarem seus produtos, os dois países terão mais dos dois bens e assim estarão em situação melhor que com suas economias fechadas. A mesma lógica se aplica a nós, você tem que se especializar naquilo que desenvolve bem. Se os fortões por ai pegam mulher mostrando-se fortões, porque não posso tentar as minhas mostrando-me intelectual? Mesmo que minha “produção” seja menor do que a dos fortões, é melhor do que se eu tentasse seduzi-la com atrativos físicos e lábia?
Pensei em chamá-la para sair outro dia, posto que hoje já poderia dormir com sensação de trabalho cumprido; mas resolvi citar que ia numa festa com uns amigos, para ver se ela topava. Ela sorriu. Saber que ela tomava cerveja me encorajou. Prometi não falar em pós-modernidade na festa, e que meus amigos eram um pouco mais normais. Acrescentei que teríamos carona para ir e para voltar. Ela achou que seria legal uma festinha, sorriu, afinal era quinta-feira. Trocamos números de telefone, e nos despedimos com um beijo-falso no rosto e abracei-a rapidamente, embora permanecesse sentada na cadeira e inclinar meu corpo sobre a mesinha tivesse atrapalhado um pouco.
Sai da sala de informática, o papo se estendera um tanto mais que o previsto e tinha aula agora. Acho que ela não reparou que eu tinha esquecido de usar o computador, a imaginava mais inteligente, espirituosa. Se bem que sua demonstração de interesse no inicio da conversa perguntando-me porque perguntei se ela fazia psicologia foi o que me deu ânimo para prosseguir o dialogo, que foi mais um monólogo, se se analisar bem.
Faz música, ainda bem que já tenho aquelas músicas instrumentais lá no meu computador. Agora tenho que pesquisar um mais sobre a vida e as propostas desse tal Paul Muriati, e procurar outros maestros experimentais da mesma linha. Também tenho que procurar uma festa e ver se a galera quer ir, ver se as meninas querem ir, para quebrar o gelo um pouco, pelo menos até a cerveja desempenhar seu papel.
Acho que vou desistir da aula.
2.
Não sou cientista, Deus me livre. Mas coisa sábia desses filósofos foi promover a utilização de métodos, de índices, que aplicamos mesmo sem saber. A dedução só perde para o fogo e para a roda na história da humanidade. Empata com a pólvora, uma justifica e outra operacionaliza os conflitos modernos, que são os alicerces da economia desde muito tempo.
Gosto de analisar as pessoas através de índices, da semiótica. Falarei pouco sobre ela até agora, tentarei esboçar um ensaio sobre minhas impressões pré-contato, sobre meus pré-conceitos. Partirei do geral para o particular, sendo este último apenas um esboço, apenas.
Ela é branca, dessas brancas que não estão acostumas com o sol. Nem magra nem gorda, faz o tipo gostosa mesmo, mas não parece trabalhar o fator corpo, poucas vezes a vi com blusinhas em que seu colo e alto-ventre se mostrasse. Faz o tipo italianinha, seus cabelos são de um louro escuro, miscigenado, e suas sobrancelhas também, daí conclui-se que não tem o hábito de pintar os cabelos, fato, aliás, que me admira. Gosto das pessoas naturalmente.
Veste-se mais para o estilo hippie: de uma escala de zero a dez, sendo o zero ‘patricinha’ e o dez hippie, daria um 7,5 para ela. Instigam-me essas mocinhas meio hippies, mas não é nada ideológico de minha parte não, é que isso é um sintoma de que há algo de contestador, fora do padrão de estilo da classe-média, e é exatamente essa desvirtuação que indica que elas podem acabar com caras como eu (acabar na cama, digo). Seus óculos de armação cor ferrugem também me deixaram instigado, como que perante uma alquimista que iria transformar-me a matéria como bem quisesse: todos os sentimentos do mundo estavam em suas mãos e poderia a qualquer momento me utilizar de frasco para misturá-los.
Outro índice que acho fundamental nas mulheres são as unhas, elas dizem muito. Talvez devido a alguns filmes que assisto, unhas médias, de extremidade quadrada ( não arredondada) e bem feitas sempre se associam à sexo oral, unhas sujas falta de higiene, quebradas a desleixo ou a falta de nutrição e assim por diante. Conheci uma mulher-jovem que deixa curta apenas a unha do dedo-médio, a finalidade que atribuía a isso me enchia de pensamentos onanistas. Mas as dela são curtas, redondinhas, e nunca as vi com esmalte, somente aquela substância que as deixam reluzentes. Outro fator que me atraiu. Mas em sua mão, chamou-me a atenção o fato de usar um anel prateado e espesso no dedo indicador. Escutei em algum lugar, ou li, que esse era um código de reconhecimento entre homossexuais femininas. Não sei o quanto disso é verdade, tão pouco se ela sabe. Acho que isso me perturbou um pouco, pois tenho a impressão de tê-la visto algumas vezes observando outras meninas... pode ser que estava com olhar vago, pensativo, ou fantasiando.
Dada uma esmiuçada na moça, cabe agora contar o que aconteceu naquele inicio de noite, ou que poderia ter acontecido.
Telefonei para dois amigos, saber de festas. Eles me falaram de ir à boate, retruquei que não estava com pique. Perguntei sobre festas universitárias, no máximo algum show. Citaram o Hard Day´s Night, boa pedida, pois ali se apresentavam bandas de rock ou Reggae, era barato para entrar e vendiam cerveja de garrafa. Eles toparam de ir lá, ficaram de passar em casa às dez. Agora tinha que chamar as meninas, o bom de ter amiga é esse: dá-te margem para convidar outras mulheres para sair sem parecer um canastrão (além do sexo casual, é claro). Mas nenhuma delas quis ir, deram desculpas.
Como não tinha nenhuma festa da faculdade, e nem outras mulheres para nos acompanhar, resolvi desistir da empreitada. Liguei para os caras falando que apareceu um imprevisto: uma gatinha querendo ver um filme em casa. Esse era um motivo de força maior, reconheceram.
Conhecia-me o bastante para saber que efetivamente só sairia com ela essa noite se desse tudo certo, se o acaso assim alinhasse. Se fosse um homem objetivo, um caçador de olhos juntos que funcionassem como uma mira de precisão, teria convidado-a para um encontro a dois, em casa mesmo talvez, ou nalgum bar próximo. Mas joguei a moeda, quis contar com uma série de fatores, como que pedindo a benção da sorte. Agora é traçar um plano antes de ligar para ela, tenho que vê-la hoje, senão retrocederei alguns passos. É mais ou menos como um guepardo, uma vez lançada a investida não se pode voltar atrás, com a energia que esses animais gastam durante o ataque, um erro na escolha do alvo pode custar não só uma refeição, mas ser fatal. O roteiro: Primeiro falar que a turma desanimou de ir. Depois falar que vou ficar em casa mesmo. Citar que sairei para comer um lanche, talvez tomar uma cerveja no bar do Macaco (aquele mesmo bar que a encontrei tomando cerveja), dependendo de a reação convidar para ir também. Por último falar que verei um filme em casa mesmo, se ela interessar-se, convidar para vir ver.
Esboçado o plano, liguei: “Oi, tudo bem? sou eu...”. “Oi! todo bom”. “Então, o pessoal que ia sair hoje furou, as meninas se esconderam e os caras vão a uma boate. Daí desencanei”. “Que pena... ah... mas não faz mal, deixa para outro dia”. “Pois é, estou pensando em ir no Macaco mesmo, comer um lanche, tomar uma cervejinha...”. “...”. “Ficar mais sossegado... depois voltar para casa e ver um filminho...”. “Hum... e que filme vai assistir?”. “Então, não sei ainda. Tenho alguns aqui em casa, no computador, baixo na faculdade e trago, depois gravo em DVD e assisto. Você quer vir ver, daí a gente escolhe junto?”. “Vontade não me falta. Onde você mora?”. “Moro na rua do Macaco, só que na parte alta”. “Então, eu moro na baixa... nah, deixa para outro dia, um sábado ou domingo...”. “Você tem aula amanhã cedo? por que aqui na Rep. tenho colchão, posso dormir nele e você na minha cama...”. “... não tenho aula amanha cedo... hum... até pode ser... não ia fazer nada hoje mesmo”. “Fechou então: a gente se encontra lá no Macaco às dez, daí subimos aqui para casa”. “Beleza, combinado... hum... posso levar uma amiga?”. “Claro, sem problemas!”. “Beleza então, beijão”. “Até daqui a pouco”.
Agora eu conhecia, enfim, os sentimentos: dos gregos quando tomaram Tróia; dos portugueses no então Cabo Das Tormentas; de Napoleão em Roma, dos soviéticos em Berlim. Minha consciência ficou algum tempo plenamente satisfeita, enfim. Daquele instante que sucedeu o telefonema em diante, eu estava transpirando contentamento. Não sabia, então, do monstro que estava alimentando dentro de mim, e nem do estrago que ira causar quando sua fome se tornasse impossível de ser saciada. Iria devorar-nos (a mim e aos outros eu que me coabitam).
A perguntar que não me deixava: ela quer dar ou não? A leitura dos sinais dela tinha que ser precisa para não haver excesso de força (que soaria como um: ou dá ou desce), tampouco fraqueza em demasia, coisa que acaba com qualquer homem. Tinha que ser uma sintonia fina entre os incentivos dela e minhas respostas, para convergirmos ao equilíbrio, ao entendimento. Um conceito importante nessas horas é o de ‘armadinha da amizade’ na arte de seduzir: tentando persuadir a mulher com estórias e vantagens, corremos o risco exceder no ponto ótimo de aproximação que maximiza o interesse delas (tesão), e nos tornarmos amigos, daí o todo esforço é dissipado, toda a luta é vã. Então é partir para o menos pior, tentar salvar algo pedindo-as para apresentarem as amigas.
O fato de ela querer trazer uma amiga pesava contra mim. É mais fácil ela estar querendo se livrar de um encontro a dois do que planejando uma suruba. Mas há a chance. Subitamente lembro-me do seu anel no dedo indicador.
3.
Estou sentado na varanda do meu quarto, que dá para os quintais das casas vizinhas. O dia está claro, mas o sol ainda não veio, mas seu tapete azul é é manchado de nuvens vermelhas que apontam onde ele nascerá (direção que não é nova, visto que estou na varanda onde tantas vezes o vi chegar). Os pássaros anunciam a chegada do Rei.
Fumo o quarto cigarro da minha vida, este está menos amargo e mais triste, o prazer do segundo foi o melhor.
A seguir, de como as coisas se deram essa noite.
Fui para o bar, e fiquei aguardando. Troquei o tradicional X-Bacon por um X-Salada, para manter a alma um pouco mais limpa, a cerveja faz parte no projeto alvejante. São nesses momentos pares antecessores de momentos impares, que comprovamos a existência de vários universos. Vejamos uma análise embasada naquelas mesmas teorias que me detive a explicá-la em nossa primeira conversa... De como não há diferença para o cérebro (ou fisiologicamente), entre o que os sentidos captam, isso que achamos que vivemos, e o ato que imaginarmos situações. De tudo o que vivemos essa noite, contar-lhes-ei um terço delas, posto que as outras partes somente elas viveram: o caminho até o bar e depois indo-nos para casa e no antes e no após o filme. Em uma obra de arte cada qual vê, sente uma coisa, pois ela desperta as distintas lembranças do nosso álbum de figurinhas.
Chegaram o lanche e a segunda cerveja. Se fosse em outros tempos, minha lábia seria o tacape, a levaria para casa e quando acordasse, taiparíamos. Apesar que, se fosse nesses tempos, teria eu nascido na casta dos líderes espirituais ou estaria fazendo igual àqueles macacos fracos e sem lugar no bando, que apenas se masturbam encima de qualquer árvore. A dominação nesses tempos de pax se dá pele persuasão, olhos-nos-olhos e mão entrelaçadas. Não posso tirar os olhos dos dela e tenho que manter um meio sorriso no rosto. Fazê-la perceber que estou imaginando-a nua, mas sem olhar em demasia para os seios ou para a bunda, caso ela se levante. Para um segundo encontro, depois de já ter beijado, daí sim pode-se deixar o animal de eterno cio tomar conta. “Por hora, você tem que demonstrar através de gestos e expressões calculada que deseja cada parte do corpo dela e que, se necessários fosse, ergueria uma ponte para ficarem juntos… nada de se jogar de ponte em função dela, mulher nenhuma quer que o cara se jogue da ponte, até que ficariam felizes, e tristes por estarem feliz, mas isso acabaria com a brincadeira.”
Estou no desafio das ultimas dentadas no lanche e elas chegam. Não sei se X-Salada é um bom índice para ela. Deixei o resto de lanche no prato. Limpei a boca com guardanapo e me levantei para cumprimentá-las.
E isso de que o gato “brinca” com o gato depois de predá-lo é apenas uma fábula. Após segurar o roedor com uma das patas, não tarda em se utilizar das poderosas mandíbulas para destroçar o céfalo, engoli-lo e fazer o mesmo com as demais partes do corpo.” Detive-me a essa ultima lição e não prestei atenção ao nome da amiga, mas nada que não venha a saber mais tarde, a noite será longa, espero.
Sentam-se. Mesa quadrada e de plástico, típica de bar. Cadeiras também de plástico.
“Acabei de comer. Já deixei avisado com o menino para que, quando vocês chegassem, ele trazer mais dois copos… até pedi para deixar no congelador os copos, para ficarem perfeitos à degustação da cerveja…”. “Nossa, que honra… chegaram… pode deixar que eu sirvo a gente… Tim-tim. Há algum filme que, por algumas horas, irá nos tirar de nós mesmos!”. “Tim-tim”, repetimos a amiga e eu. Achei que estava querendo me impressionar – ou querendo impressionar quem achava que eu era, àquele cara que conheceu na sala de informática, suponho. Meio sorriso ficou mais natural.
Durante sua conversa, procurei olhá-la nos olhos.
Quanto à amiga, essa tinha um ar sereno. Cabelos negros e lisos, pele um pouco morena, meio mediterrânea, meio indígena. Até agora não tinha sorrido, ao menos não reparei, não compartilhava a alegria da outra. Mas também não mantinha a boca de tudo fechada, os lábios separados expiravam desalento, que deixavam sua imagem um pouco insossa, mas leve.
“Para hoje separei um Godard, acho que vão gostar, pois a estória central é de uma mulher francesa jovem que busca ser atriz, ou mais que atriz, busca sua essência, seu contentamento… pelo menos li dessa forma… e tem diálogos ricos, acrescenta, sabe…Viver A Vida, o nome”. “Que bom, não vimos muito de Godard, mas sempre escutamos falar dele e dos diretores da nouvelle vague… Trufaut… vimos o Bande à Part, dele, do Godard, um clássico, né? Esse filme é o preferido do Tarantino, sabia? E, olhando para a amiga, acrescentou: “ Dá vontade de fazer a louca que vem à cabeça, ou arrumar uma para deixar essa monotonia da vida mais azul, ver se tangemos a liberdade…” Enquanto enchia os três copos, respondi, olhando-a. “Não sabia… mas é bem a cara dele mesmo, falam que nesse filme Godard fez uma homenagem ao cinema estadunidense do gênero. É mais difícil de achar filmes do Trufaut na net… mas também procurei uma vez só…”. Rimos. Ela mantinha um sorriso franco desde que chegou, como que ainda não desperta de uma estase sexual, ou na eminência de um.
Até agora a amiga estava muda, somente observando. Olhava-me enquanto eu buscava os olhos da outra, e a olhava se esquivando de minhas empreitadas psicológicas. Ela já sabia o que eu queria, para ambas já tinha ficado claro, acho.
Olhar para a amiga e falar de liberdade e loucura me deixou um pouco atônito. E também achei um tanto sutil da parte dela dizer que “não vimos muito de Godard, mas sempre escutamos falar dele…”. O uso do pronome pessoal no plural indica uma cumplicidade, um elo que transcende a amizade… será que carregam consigo uma a imagem na outra encardida em seus sub-conscientes? Pior que não me vem à mente um método seguro (de baixo risco) que me permita testar essa hipótese e ter resultados confiáveis.
"Vamos pedir outra, ou já vamos ver o filme? estou ansiosa por ver Goudard novamente.”. “Por mim podemos ir. Temos uma garrafa de vinho na geladeira;uma não, umas!”. “Hum, você está premeditando demais as coisas essa noite…”, olhava para mim e afastou um pouco a cabeça e o corpo para trás, meio sorriso no rosto e pela primeira vez procurou os meus olhos, mesmo que brevemente. “Sou um homem-cirúrgico: gosto de pensar na ação, na reação e contra-reação.” Rimos os dois. A amiga permaneceu calada, apenas franziu os lábios, esboçando um sorriso que logo se acanhou. Resolvi conjugar verbos na primeira pessoa do plural também, pois ele dissolve o egoísmo das ações e dos planos; além do efeito citado acima.
Nisso, a conta chegou. Cada uma pagou o equivalente a uma cerveja e eu o restante. Ao me levantar, tomo cuidado de alinhar logo minha camisa, de modo que as meninas não percebam minha ereção. Tenho em mente que sentimento sem ação leva à ruína da alma. Novamente o bicho do querer a devorar.
4.
Partimos. A casa ficava a algumas quadras dali. A nossa disposição foi naturalmente arranjada, acho. Ela ficou no meu, a amiga tomou a direita, restando para eu a esquerda. Predestinação ou aleatoriedade? Não sei. Sou um cara ateu, mais supersticioso, mas não com essas superstições de senso-comum, que envolvem gato-preto e escada. Crio as minhas observando os fatos, as ações e as reações, superstições embasadas cientificamente. E ficar à esquerda não me pareceu boa sorte. Na Última Ceia de Da Vinci, Judas estava à direita de Cristo, sim, mas em todos os retratos da reunião que vieram depois, ele está à esquerda com seu saquinho de moedas. Não sou conhecedor de outras teorias (se é que essa é uma) sobre semiótica, mas a esquerda, definitivamente, não é um bom presságio em nossa cultura.
São tantos os devaneios… sonhamos e às vezes tão intensamente que, ante á possível, ou antes, à inevitável realização deles, sentimos medo, medo da eminente alegria. Suscita a consciência do perigo da felicidade. De não conseguir cunhar o ouro do pote encontrado atrás do arco-íris. Medo de despertar o Dragão do Querer e não saciá-lo as vontades. Mas, sobretudo, medo de sermos repetitivos, não reinventarmo-nos e não termos outros sonhos, novos sonhos. De chegar ao cume e ter de descer.
Como o caminho não merecia a introspecção à qual nos detínhamos, resolvi puxar assunto com a amiga, afinal, se tudo desse certo essa noite… “Você também faz música?” “faço sim” ela respondeu, sem me olhar. “Deve ser um curso que enriquece muito. Culturalmente…” “mais ou menos… a faculdade atrapalha os nossos estudos...”. Uso de jargão, ponto negativo. “É mesmo”, concordei e inclinei meu corpo tentando olhá-la, para que ela pudesse ver meu sorriso… Continuei: “Hoje pela manhã escutei música clássica e me lembrei de você, coloquei Paul Muriat…” “Existem lendas em pedagogia?”, ela me interrompeu. “Lendas?” “é, lendas, tipo… termos que o senso-comum se utiliza inapropriadamente?… falácias”. Olhei para amiga e essa matinha um meio sorriso no rosto e olhava para baixo como que prevendo o discurso, e como eu mantinha uma cara de interrogação, ela prosseguiu com o raciocínio. “Por que música clássica foi feita no período clássico, com padrões estéticos clássicos… Mozart não é clássico por ter sido muito bom, ou tocar música instrumental (sinfônica, no caso), mas por ter produzido no estilo da época, ter preocupação em expressar suas emoções de uma maneira refinada e educada. Bach era barroco e assim por diante. Beethoven romântico, por exemplo.” Ainda estava bem atordoado e reinou um certo silêncio. “Ah, então segue mais ou menos o mesmo padrão da literatura, por exemplo?” “Isso…” e sorriu. Enfim algo de inteligente a se dizer. Estava atordoado não pela quebra do conceito sobre história da música; mas principalmente pelo conceito que tinha eu formado sobre ela. Já estava com seu mapa-astral em mente e, como gato, brincando com o rato. Mas me provou ter sua estrutura, sim; ter personalidade esférica e não plana. Tinha-lhe por ponte, mas era uma gruta, e quando meu entendimento chegou à essa entrada fiquei feliz, sorri ante o novo desafio.
Caminhávamos calados novamente. Ela ainda mantinha um meio sorriso no rosto, vitorioso e satisfeito, desses que imprime na face pensamentos não tão inocentes, não. Bem sei. A pretexto de frio, deu os braços à amiga, encolheram e se apertaram. Olhou-me, e eu, que tinha trocado ao sorriso pela dúvida, tive meu braço envolvido e apertado pelo dela. Virei o rosto e senti o cheiro do seu cabelo e do pescoço. Não usava perfume. Acho muito piegas descrever o que esse tipo de incentivo instiga, mas as partículas voláteis que seu corpo emanava tomaram de tal forma meu órgão olfativo, que a percepção deles manifestou sensações tão diversas que fui derrotado, suspirei para retomar o ar que não viera na respiração anterior, e desejei acordar todos os dias sentindo-o.
Conversavam. Falavam sobre a maior dificuldade de se fazer graduação musical especialidade em piano, que era necessariamente possuir um piano. Mas faziam planos de comprá-lo em sociedade. Compartilhar um piano, é compartilhar a vida, pensei.
“Por que você está sorrindo assim?” “Por nada não… acabamos de chegar em casa”. Abri o portão. “Vocês não tem cachorro nessa casa grande?”, perguntou a amiga. “Temos, mas ela é muito boba e não late para visitas.” “Por que Limbo?” “e porque a frase: deixai toda a esperança, ó vós que entrais.”. Elas perguntaram ao lerem os escritos nas paredes do alpendre. “É porque a república se chama ‘Dantesca’, em alusão ao Inferno de Dante. Daí os fundadores colocaram cada cômodo da casa como sendo um dos círculos infernais, aqui é o limbo por que ele não faz propriamente parte do inferno…” Entramos na casa. “A sala é o segundo, onde os luxuriosos sofriam com ventos vulcânicos”. “Nossa, que criativos… e tem uma janela grande aqui… e com o calor que faz nessa cidade…” “pois é, e aqui é o lugar da luxuria, da descontração… a cozinha, venham cá, é o terceiro, onde os glutões ficavam expostos à chuva ácida” Pego o vinho na geladeira e abro, nos sentamos à mesa. Copos americanos. A conversa se desenvolve despretensiosamente. A mistura vinho e cerveja começa a fazer o esperado efeito.
Chamei para nos acomodarmos no recinto da luxuria, sorrindo devido ao vinho e à eminência do grande feito. Coloquei o DVD enquanto elas se arrumavam no colchão de casal que estava no chão e esticavam o cobertor. Ela ficou no meio e a amiga na direita novamente. Deitei olhando-a e sorrindo, ela já estava alegre, mas irradiou-se. Começou o filme.
Filmes do Godard instigam a foder, e são para se ver depois de foder, para dar vontade de foder mais. Vê-los sozinho entristece o que, por definição, já é triste. Dão vontade de foder por que dão vontade de viver, e viver é sentir, acho. E sentir é diferente de ter sentimento: o sentimento é uma força, um substantivo que remete sempre a um objeto… se já o sentir é o movimento a que essa força impele, a ação. O sentimento apenas, sem sentir, sem a ação, represado, leva, possivelmente, á loucura.
Pediram mais vinho, que foi prontamente atendido, pois a garrafa estava do meu lado. Quando o casal, depois de um denso diálogo no bar, foi jogar fliperama, por debaixo do cobertor passei a mão na perna dela, protegida pelo jeans. Apertei (o máximo que poderia me acontecer era ela mandar tirar a mão dali, ou afastar o corpo; calculei), mas com o pé, roçou o meu e ficamos assim. Satisfeito de ter apertado sua perda, fui subir para a barriga e possivelmente descer por dentro da calça, mas encontrei ai a mão da amiga, que apertou a minha e entrelaçamos os dedos. Ela já estava de olhos fechados e um pouco ofegante. Desatei meus dedos dos da amiga e procurei os pelos pubianos, mas o Monte de Vênus estava liso. Beijei o ombro dela, depois o pescoço e elas já estavam se beijando.
O que se passou depois, contarei sucintamente, pois foi apenas o xeque-mate. Como no jogo de xadrez, o final é o menos passível de explicações e táticas: um rei, uma dama e uma torre facilmente derrotam o rei oposto solitário (metaforicamente, o esse rei era o pudor ou algo que o valha). Restam, então, três peças.
Agora, aqui na varanda fumando o cigarro da amiga penso única e exclusivamente em me casar com as duas. A casa teria de ter três quartos (um álibi para a poligamia). Daí seria muito bom se as duas engravidassem ao mesmo tempo… A vida a três seria perfeita, elas são melhores amigas, e um homem ligado a somente uma delas enfraqueceria esse elo. Também no casamento, o difícil para o homem é ser ‘amiga’ da mulher e se portar, às vezes, como tal. Enquanto eu assistiria futebol, ou faria minhas pesquisas acadêmicas, elas brincariam, daí eu chegaria e completaríamos a festa. O principio moral de monogamia deve ter sido advogados e implementado pelos fracos que viam grupos de fêmeas defendidos por poucos machos destemidos.
Matei o cigarro e estava duro novamente. Entrei no quarto e fechei a porta da varanda, pois as meninas estavam descobertas. Ela dormia na minha cama e amiga num colchão no chão. Subi na cama a abri as pernas dela, que dormia de barriga para cima e apenas de camisa. Umedeci meus dedos de saliva e lubrifiquei o local da invaginação, onde me introduzi. Olhava-a atentamente, não queria perder o momento exato de vê-la acordar. Seu despertar começou com tremulação das pálpebras e depois dos músculos da região ocular. Eu já fazia um leve movimento pendular com meu corpo. Logo ela suspirou e depois relaxou, um sorriso reluziu e o lábio inferior foi mordido. O abdômen contraído, o lençol apertado. Intensifiquei o movimento. Ainda de olhos fechados, sua mão procurou o meu rosto e beijei-lhe a palma; depois segurou o meu pescoço como se tivesse empunhando uma espada e o polegar roçava o pomo-de-adão. Abriu os olhos, sorriu e gemeu.
“E ela?” perguntou, sussurrando. “Está no colchão”. “Vamos acordá-la assim também…” De fato se amam, são eternamente responsáveis uma pela outra. Desmontamo-nos e fomos para o chão. Ela abriu as pernas na amiga e colocou a cabeça entre elas para despertá-la, se pondo de quatro. Lubrifiquei-a novamente e entrei. A amiga acendeu com um sorriso, que se seguiu de uma expressão severa, e sorriso novamente. Colocou a mão na cabeça de sua benfazeja e massageou seus cabelos. Eu cumpria com os movimentos pendular.
O dia começou como terminou.
Penso em me casar, ter filhos e um emprego. Uma vida normal, enfim. Nessa vaga procura por quem seremos, defrontamos o espelho, olhos nos olhos, e vemos quem está lá dentro e este também nos olha, desvendando, sempre, as faces ocultas pelas máscaras. O espelho mostra-nos quem de fato somos (um medo do futuro), quem não somos (este que veste ternos ou usa colares) e remete a quem gostaríamos de ser. Este é o monstro que libertei e que irá me devorar.