No apagar das luzes
A pequena menina de vestido vermelho se espanta e, emocionada, admira a luminosa faixa da entrada e a gigantesca lona colorida do circo que acabava de chegar à cidade. Após descer do carro, segurando a mão da mãe, ela observa seu pai na fila do ingresso. Ela se delicia com as tonalidades que a envolvem, com as pessoas que passam ansiosas pela catraca da entrada, com a expectativa de presenciar a visão fantástica de alguma coisa que ela não sabe o que é. Ela se prepara para abandonar a realidade e entrar em uma terra mágica, descoberta em meio às ruas cinzentas. Ali, os sonhos ganham vida e a felicidade perdura enquanto houver luz, cor e som. Sentia um medo – pois se teme aquilo que não se conhece – e segurava com mais força ainda a mão de sua atenta e cuidadosa mãe.
Eles entram e sentam no meio das arquibancadas. Do colo da mãe ela começa a captar detalhes: o palco, as crianças que choram e outras que abrem imensos sorrisos em seus rostos rosados. Uma fumaça que ela não sabe de onde vem envolve os expectadores de um misticismo e suspense. Seus olhos brilham quando, de repente, as luzes se apagam, deixando o circo imerso na escuridão para, logo depois, surgir uma luz prateada, que desenha um círculo luminoso no chão. Um homem surge trajando um terno engraçado e uma gravata enorme. Ele anuncia o início do espetáculo em meio à aplausos e assobios do público.
Então ela vê animais e domadores, e fecha os olhos quando os trapezistas arriscam um salto perigoso. Em uma das últimas apresentações, os palhaços começam a correr no meio das arquibancadas e, um deles se aproxima da menina – fascinada – de vestido vermelho, fazendo uma reverência exagerada, gerando risos e aplausos. Seu cabelo é azul e grosso, e seus olhos se perdem em meio dos desenhos pintados em seu rosto. Após a reverência, ele a presenteia com uma flor tirada de um bolso secreto do palitó. A menina, atônita, recolhe o rosto nos braços da mãe em uma mistura de surpresa, medo e timidez, enquanto o palhaço, com seu cabelo azul, corre em direção ao centro, recebendo gritos de alegria e pipocas salgadas na cabeça.
Então o show termina, e aquilo que deveria durar para sempre chega ao fim. A luz se torna clara e dispersa as sombras que mantinham a ilusão do lugar. As pessoas começam a se levantarem e dirigem-se apressadas para a saída. A noite está linda e cobre o público com seu manto negro polvilhado de estrelas frias – como se quisesse sorrir também com as crianças lá embaixo. A pequena menina entra no carro segurando a flor, e seu coração se entristece ao ver o circo ficar para trás quando o carro começa a andar vagarosamente em meio ao tumulto de pessoas e carros nas ruas. Mas ela se alegrará ainda se alegrará ao sonhar com as luzes e as cores, quando as mesmas emoções aflorarem e seus olhos brilharem outra vez.
Atrás da lona, em algum trailer prateado e frio, um homem tenta tirar as pesadas botas amarelas que lhe calçam os pés. Ele geme ao tentar – talvez sinta dor nas costas ou no ventre, no fígado debilitado. Seus olhos vagam pela minúscula sala, e se sentem cansados de viver – pensam em desistir desta vez. “Ela foi embora e levou a minha flor..”, ele se levanta para pegar a garrafa de vidro contendo um líquido incolor em cima de uma mesinha.
Sentado agora, com o copo cheio, relembrando um passado amargo, pensando “disse que faria ela feliz, disse que faria ela feliz e seríamos uma família de verdade e eu trabalharia em um emprego e teria dinheiro ela largaria a vida fácil vida fácil...nunca me importei, pois eu a amava...mas ela largaria a vida que ela levava para ter a nossa filha e cuidar dela e amar ela porque eu também amaria ela mas não consegui dinheiro e emprego e então ela levou minha flor embora embora e quase enlouqueci e ela me disse que não era feliz ao meu lado e que a filha era dela e ela arrumaria um pai de verdade que tivesse dinheiro dinheiro...roubar roubar...pedi então para ver a minha florzinha mas ela está longe...”, e o copo se esvazia uma, duas, três vezes. O cheiro de álcool sobe em seu rosto e ele passa a mão na peruca azul ainda em sua cabeça. “Se eu pudesse vê-la mais uma vez...” pensando e lembrando das tantas meninas de vestido vermelho e das pedras que lhe machucavam os pés na estrada sinuosa da existência.