ENQUANTO AS FLORES NÃO VÊM
Nas andanças pelo Brasil afora é que se pode atentar para asecura que ataca as bocas, deixando as línguas brancas,com seus espinhos arrebentados, em posição trabalhada, especialmente, para que alguma gota de suor lhes respingue os cravos, exterminando os ressequidos movimentos operados pela natural têmpera, que a natureza lhes dotou. É preciso percorrer os campos rescaldados do Nordeste, onde a poeira come firme tapando o nariz e entupindo os pulmões. Por aqui, de manhã cedo, soltamos o bafo fumacento que a cerração impele; lá, sopra-se longe o barro acumulado pela incerteza dos que dele alguma coisa esperam. Sente-se a mão pesada dos doutores e o reluzente brilho da “peixeira” empanando os ambientes mais sofisticados, embainhada na cintura dos homens de mãos calejadas, que a carregam como prova insuperável de força, porque lhe impõe coragem e respeito. – Retalhados pelas calçadas, inertes aos transeuntes, expostos aos raios solares, encontram-se corpos abandonados, esperando que alguém tome para si,o direito de enterra-los. Como herança- as alpargatas e o chapéu de palha. Sobrevive a palhoça de chão batido sem assento para as visitas; no mesmo cômodo, uma trempe, onde a panela de barro ferve o feijão insosso, destemperado, sem paladar,conservando apenas, o gosto natural que a água e o sal lhe conferem, cozido sob o calor do fogo tocado a lenha. Sobrevive ainda, o pote de barro, o jacaré de flandre e os canecos de lata fabricados ao serem recolhidos pelas crianças nos monturos do lixo. – O jumento carrega do brejo, as ancas d’água; a lenha partida aos golpes do machado; o arroz pilado no pilão de madeira, que também pisa o café torrado no tacho, e espalhado sobre a tábua borrifada de cinza. A cachaça auto-respeitada –
propósito único para qualquer pretexto em todas as ocasiões; responsável por muitas mortes, grandeza e poderio dos coronéis exploradores da timidez humilde – malandros que se sustentam do suor destes desprotegidos. – Grande amiga dos boiadeiros e agricultores, que conservam nos seus roçados e capoieras o cheiro da esperança de que “as flores voltem a florir” nos seus recantos, enfeitando os campos, alimentando as “Jandaíras”- operárias de fino bom-gosto- fornecedoras do melhor mel existente no mundo. É nesse instante que se sente o sorriso da Mãe-Natureza, prometendo atender mais às solicitações de seus filhos. As rezadeiras e parteiras rejubilam-se com a sua chegada: - espremem o bicho de pé; curam a espinhela caída dos patrões detentores de suas virgindades. acredita-se ainda no poder da cura através da“meizinha”que preparava “do-
na Malaquia” – parteira e curandeira famosa, que me puxou do ventre, cortou-me o umbigo e enterrou no quintal. Defumou-me os cueiros com o perfumado aroma das folhinhas de alfazema; deu-me o primeiro banho e a primeira palmada no bum-bum. – As fórmulas medicinais preparadas pelo seu João Batista- único farmacêutico pratico,com experiência de cura das mais variadas doenças, entre elas,as mais comuns, do aparelho genital de ambos os sexos. Sua esposa – dona Maroca, fazia as vezes do padeiro, servindo logo cedo o cuscuz quentinho, regado à gordura de porco. –A “Amélia Beição" – linguiceira famosa, que atraía velhos e moços aos seus quitutes simples, de sabor fora do comum, servidos no prato de barro; grande mascadeira de fumo – segundo as más línguas – babava enquanto fazia as linguiças, mesmo assim, eram as mais preferidas, de cheiro especial. – A “casa da trisca”- considerada o “baixo meretrício”, o único, porque o alto – mulheres cujo forte era enganar os maridos inocentes, apareciam pela escuridão da noite, envoltas em lençóis brancos, de encontro aos seus casos extra-matrimoniais, que se tornavam estórias fabulosas, como:- “Almas penadas ou fantasmas”, levando medo a quem ficava até mais tarde pelas ruas. E mais: - O leite de pião para curar dor de dente; o cozimento de manjericão para expelir os males do corpo; os chás de : marmeleiro, hortelã, folha de laranjeira, folha de cidreira; - a queimadura da urtiga, a frieira que rói os dedos do pé; a bosta de cachorro que espanta o sarampo; a urina quente que tira a água do ouvido; o veneno do manacá; o espinho do mandacaru; o cheiro do gambá; o cachorro doido solto pelas ruas; a lagoa onde se toma banho pelado e a nudez não analisa o sexo. – As andanças pelas veredas apertadas dos matagais; a garupa do cavalo, do burro ou do jumentinho, que foge do dono para o seu antigo pasto, no momento em que sente o cheiro do inverno e o nascer do primeiro capim. – O leite puro das vacas, o galamarte, o balanço de tábuas amarradas no galho da mangueira, o esmoler, o vendedor de pirulito, que também fui na infância, para ajudar no sustento da casa e para financiar as aulas da professora particular- única fonte de saber do lugar. – a rapariga, o trem das quatro, carne de sol, mungunzá, buchada, sarapatel, chouriço, baião-de-dois, melancia, canapum, guabiraba, feijão-com- jerimum, azeite de mamona, óleo de mastruz, purgante de óleo de rícino para puxar as lombrigas, minhas tias de nomes esquisitos: (Ló, Nana, Petu, Mariola, etec.); meus irmãos, afilhados, minha rede de dormir; meu harmônio velho, o tamanco com salto de pneu ; as calças largas. a torre da Matriz; o Vigário, o delegado, a rua do papoco, o beco do rabo da gata, o cemitério velho, o açude do padre, a amplificadora da praça, o casamento na delegacia, Nossa Senhora do Parazinho, São Francisco do Canindé, Padre Cícero Romão do Juazeiro, a paçoca de carne de sol, a garapa de rapadura, a caieira, o bolo manzape, o chapéu de palha, a história da carochinha, o medo das almas penadas, a mortalha, o defunto, a raspa da casca de jenipapo para curar torções, a caçuleta, o baitola, a procissão dos santos, as barracas das festas de igreja, a calçada, a cadeira de balanço, a rede de tucum, as novenas, as ladainhas, as promessas, as peregrinações, as penitências, os andores que conduzem os santos, o feijão verde debulhado à mão, as festas de reis, o baião o zabumba, o xaxado, as pernas finas da mulher cearense, o biju, o cuscuz, o milho assado, a tapioca, a farinha d’água, a macaxeira, a pamonha, o aluá, as garrafadas medicinais, as faladeiras da vida alheia, a noiva roubada, o chitão, o zarolha, as noites de Judas, as prendas de Sexta-Feira Santa, o santo casamenteiro, a seresta, os netinhos de minha mãe e a grandeza de toda aquela gente tropeira, que transpira o sal do corpo, que não perde a originalidade, nem renega os heróis que por lá marcaram a vida desembainhando e atravessando o cipoal, tentando encontrar o rumo de sua existência, “enquanto o tempo corre e as flores não vêm”! – Nas encostas, a bandeira simbolizando a esperança de todos, para todos os anos, regozijada nas ladainhas e procissões que se encompridam pelas ruas da pequena cidade de Martinópole e o equilíbrio que a Natureza tece no homem de pele grossa e enrugada. – Ali a fome não constitui desânimo,nem desespero, porque não se espera mais do que a vida que o progresso ameaça e não convence. Atualmente, só alusões vivas de imagens mortas do passado que parece cintilante de lembranças moldadas na convivência com os animais selvagens- praticamente, extintos. Agora, apenas a presença desfigurada da vegetação rasteira surrada e ressecada pelas constantes secas da região e o punho devorador do seu perseguidor: “O BICHO HOMEM”!... Paca, tatu, marreco, jacu, urubu-rei, inhambu, rolinha, bem-te-vi, galo campina, canário da terra, guaxinim ou qualquer outra espécie; até mesmo a cobra-verde, a cobra de cipó, a seriema, o preá; todos em fase de extinção, juntamente com os lagartos: Tejuaçu, camaleão, calango ou lagartixas que desapareceram na sequidão das matas transformadas em gravetos. As rodovias substituem os trilhos, sub-existindo ao tempo- velhas pontes e bueiros dos idos do Império. A pequena estação- testemunha única do estilo rememorado na conversa dos mais velhos e até se pode perceber o ar de felicidade com que reconstituem o passado na memória da cidade: MARTINÓPOLE do interior cearense.