O dia em que fomos meninos

Ouvi ao longe disparos de fuzis e gritos. Em seguida, muita correria entre as choupanas da aldeia. Levantei a vista por uma fresta da janela e vi uma menina, vizinha nossa, cair morta – o corpo estraçalhado, banhado em sangue; os olhos esbugalhados, como a denunciar o horror. Por instinto, recolhi incontinenti minha mulher e meus três filhos, ordenei que se calassem, e ficamos encolhidos nos fundos, esperando a morte passar sem nos perceber.

Aparentemente não nos notariam os milicianos do séquito de Mobutu. Prosseguiriam em sua senda de loucura, dizimando qualquer sinal de vida humana pelos arredores de Brazzaville. Entretanto, para nossa infelicidade, o rádio de pilha voltou a funcionar. Diretamente da Argentina, o locutor transmitia a final da copa de 78.

Seria muita sorte se os cães de Kinshasa não ouvissem a voz cheia de interferência. Em menos de dez segundos, cinco soldados invadiram o barraco. Meus meninos – o mais velho de 8 anos – gritavam desesperados. O medo petrificou minha esposa, que não esboçou reação.

O líder do bando apontou o fuzil em nossa direção. Estremeci ante o ódio expresso no semblante daquele jovem de cerca de 18 anos. Era o fim, a hora mais inevitável.

Então, o radinho reverberou o gol de Kempes contra a Holanda. O assassino parou e escutou com interesse. Durante a breve distração, observou uma foto antiga, presa à parede, que passara despercebida. E assim se quedou por minutos, até que um de seus companheiros o chamasse de volta à ação.

Visivelmente perturbado, exigiu que me aproximasse.

– Você também esteve lá?

Expliquei que sim, que estive lá. “Lá” era o estádio de Brazzaville, onde Pelé jogou em 1969. O Rei interrompeu a guerra fratricida, uma das muitas que castigam a África. Foi escoltado pelas forças de Kinshasa até o nosso lado. Ao retornar, teve de exibir seu talento também na capital do Congo Belga. Após a rápida trégua, a guerra recomeçou.

Na foto, estávamos eu – então um jovem de 18 anos – e diversos garotos, vindos de variadas regiões do Congo, em volta do Rei, com seu sorriso carismático. Ele trouxera consigo cinco meninos do lado inimigo, numa medida diplomática. Um deles agora chorava à minha frente, ao se lembrar daquele dia.

Pois foi naquele dia, repleto de ludismo, que o meu provável algoz viveu os últimos momentos de sua infância. A irracionalidade do conflito tragou o menino, transformado em pequeno homem, senhor do destino de quem atravessasse seu caminho.

Mas não seríamos mais vítimas. Ao seu comando, os outros milicianos depuseram as armas. E lá ficamos, conversando, rememorando os passes mágicos de Pelé, a fantasia do drible. Por alguns instantes, era como se fôssemos velhos amigos, inebriados pela arte do futebol. A narrativa fez com que meus filhos trocassem o pavor pelo deslumbramento.

Os olhos do soldado também brilhavam. Eu podia mesmo jurar que, em certo momento, vi a genialidade de Pelé ressurgir no reflexo de suas memórias. E desejei que todos os soldados do mundo um dia tivessem sido meninos.