Carne Viva

Quero escrever esse texto em carne viva, como quem está prestes a dar seu último suspiro. É assim que vai correr a trajetória dessas palavras imergidas em sangue, em suspiros ardentes e intensos por entre uma amarga vermelhidão que escorre por todo meu corpo. Não quero forçar esta dor que mata e já estou sempre no quase fim, poupe-me então.

Começarei a minha degeneração. Ah minha doce doença, como é divina. Todos os dias agradeço a Deus por me ter feito mortal, para ter finalmente a minha felicidade que tanto busquei um dia. Cheguei nela, está aqui, posso a sentir nas mãos, é a felicidade em sua forma pura. Me sinto tão livre e desordenado eu vou escrevendo tamanha a liberdade não me preocupo com virgulas colocações nem em frases coordenadas justapostas em frases sou fragmentado em cacos sendo essa minha coleção talvez ou não a qual eu me dedico nada nada quero apenas sair da podridão dos músculos tão roídos tadinhos por insetos e também meu sangue anêmico aguado sei-lá-mais-o-que é se é mesmo...

Parem tudo, querem interromper esse meu momento que é só meu. É sempre assim. Querem me deixar preso, nesse cárcere esburacado. Não quero mesmo, além do mais eu posso fugir, deixa eles... Mas mesmo assim insistem e novamente eu suspiro e em milissegundos depois esbanjo um hálito cadavérico, vomitado e com a garganta seca e saboreando a comida que regurgitara em minha boca. E eu tenho raiva disso, que raiva. Quero me engasgar com meu próprio vômito, ficar sem fôlego acabar com tudo de uma só vez.

Eu queria partir assim, como um alarde-bomba. Como alguém que se estourou e espatifou as vísceras. Eco de seu berro íntimo, rompendo seu próprio corpo tamanho era o eco. E os estilhaços de vidros partidos com ele ajudariam a me corromper e jorrariam sangue das artérias mais profundas. A vida é realmente bonita. Agora sim. Também pudera! Pudera ver a intensidade de cada cor, pudera ver até a intensidade de líquidos transparentes, artificialidade maldita que escorre de falsas máscaras. Algumas são realmente cintilantes, pois são lágrimas pisadas.

Agora pouco pensei em chamar um amigo e chamei, mas ele disse não querer saber de minha morte. Eu disse pra ele com um olhar um pouco triste, pois é um dia muito importante pra mim, que talvez fosse melhor assim. Mas no fundo eu gosto dos restos e quero me tornar um. Resto de mim mesmo, resto da imundice, resto carcomido. No fundo no fundo se tornou a melhor opção. Do que adianta a grandeza do universo se nossos olhos se retém apenas às estrelas? De que adianta a grandeza do planeta se nem todos os lugares são explorados? De que adianta a grandeza de meu coração se todos os outros são pequenos para suportá-lo? Passei a me conformar que as coisas são assim sendo. E me sinto assim, em eterna relação de suserania e vassalagem comigo mesmo. Mas isso é o de menos, o resto é que importa.

Eu estava pensando em um outro modo de morrer para a vida. Sonhara que estava em um uma rua pouco movimentada e de repente me vem um bandido. Acho bandido um nome muito cruel para quem não me tira nada. Bandido dá idéia de alguém que tira alguma coisa e eu quero receber, estaria prestes. Aí ele pergunta o que tenho. Tem dinheiro? Dizia ele apontando a arma. Eu dizia com coragem: Pode me matar. Mas dizia em um tom suave, uma voz plumosa, canção dos anjos. Talvez fosse uma súplica. Ele não hesitou e apontou o cano em minha direção e com dedos fortes estava prestes a disparar o gatilho. Eu estava com uma calma absoluta igualmente a uma criança que descansa em um sono profundo, eu diria ingênuo. Daí soltara finalmente o ruído daquele objeto que se estendera com alta velocidade por minha direção. Nunca o tempo demorou tanto para mim. Eu estava tão ansioso esperando a bala chegar e ela parecia desviar no espaço, ela parecia não querer me atingir, logo eu que estava de peito aberto para recebê-la. Meu coração estava prestes a sangrar ao sentí-la. Eu ganharia a vida e ela estaria literalmente dentro de mim e fora também. Mas não consegui recebê-la porque a minha consciência também não me permitiu e eu voltei para cá. Voltei para essa doença azeda. A verdade é que tenho que morrer sofrendo. Tenho que sentir a dor antes de alcançar a plenitude. Mas é tanta dor, é tanta dor que as vezes penso se vale a pena partir ou tentar a cura. Não não, já estou no quase fim. Voltemos a isso então.

Ah, está chegando a hora, cada vez mais chega e eu me sinto tão poderoso com isso, sinto que posso o que quero, que é a minha vez, que chegou a minha hora e isso me deixa excitado. Meu corpo treme, numa efusão. Derramo-me em prazeres sobre o lençol branco como um animal suado e selvagem no cio e aprecio essa convulsão. Quanto mais tentam me segurar achando que podem (não podem!) me salvar, mais conseguem extrair de mim líquidos quentes como quem goza de satisfação, sorrisos satânicos.

Bem sei que por essa matéria encarnada pude conseguir faíscas sutis de sentimentos, mas me perdoem. Quem vai me seguir pra sempre é a Solidão, amiga de todas as horas. Compensa os que ficam deixando sua parente, a Ausência. Ela tem piedade dessa maçaroca carbonada. Arranjei uma amiga que pode enfim carregar um pouquinho de mim. Quero seu carinho então – nascemos um para o outro e morreremos juntos – era uma vez.

Agora estou, sou um morto-vivo – zumbi. Mas quero que realizem meu último desejo da matéria. Se bem que até na morte vocês me deixam infeliz. Vejo lágrimas ao invés de gargalhadas veementes como quem acaba de assistir um espetáculo. No fundo sou um mero coadjuvante, derrotado. Quero ser cremado e queimar nas chamas e virar pó. Depois de virar pó, podem cuspir, pisar, fazer o que quiser. O pó é livre. Vento vem vento vai e o pó coabita a dimensão. Nunca me senti tão feliz, livre de corpo e alma. Inacreditavelmente, nasci. Tornara-se fênix de si mesmo.

João Carlos Fonseca
Enviado por João Carlos Fonseca em 19/07/2009
Código do texto: T1707281
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