Aprendendo a Aprender a Canção

Só era possível sentir a fúria da brisa, a frieza do solo no qual o andarilho pisava em vão. Não havia destino para ele que andava entre casas e becos desafiando o próprio silêncio das ruas com o andar dos passos. Cada vez que andava, mais apreciava ouvir aquele silêncio íntimo, um silêncio que só ele, por ser andarilho, conseguia ouvir. Andar era sua liberdade e então, estava livre para se comunicar com o silêncio e se sentia um pouco mais confortável assim. O andarilho era sereno assim como o seu silêncio. Talvez tivesse medo do seu próprio eco. Os primeiros passos dele foram assim, de cabeça baixa, como quem ouvisse a sua própria alma ecoando. Ecoava em todos os cantos e então ele pôde sentir a frequência das vibrações, oscilando entre as harmonias e os descompassos. O descompasso era intrínseco sendo desafinado por natureza errante.

A vontade do andarilho era de apertar o gatilho, sempre em rima, porém andando mais rápido a fim de chegar ao fim do trajeto. Haveria fim? Isso pelo menos era seu desejo. Entretanto o silêncio era o seu trunfo e a pressa configuraria a imperfeição do não-dito, embora isso todos soubessem, pois é dito, é grito das canções. Com o silêncio ele poderia pensar mais no que estava ao seu redor e fora por isso provavelmente que andava com olhos de criança esperta. Ele sempre com os olhos, percebia todas as notas que tocavam seu coração. Sua boca? Emitiria notas graves - as notas chegadas em si mesmo. Era um reflexo de todas as canções. E o eco é por si só doloroso e cansativo pois tem de se auto-reafirmar a cada instante até não fazer mais sentido. Descobriu então que calado era muito melhor do que imaginava. Não gostava(m) de sua canção.

Andarilho errante – ia ele caminhando com os cabelos escorrendo frente a face como verdadeiras gramas ritmadas. Era a coreografia de seu corpo, era sua verdade aos berros. A coreografia escondia a casca dele mesmo, mas era puramente sendo.

Foi quando o andarilho viu que sua música estava silenciosa demais que ele se deu conta do perigo. Ele se deu conta do inimigo que estava ao seu lado. Concluiu por surpresa que o silêncio combatia a si mesmo como um alarde. Sim, os excessos de passos era um dó sustenido. Era um mi dó que ele não queria demonstrar. Si seus passos não fossem desritmados. Si seus passos não fossem direto ao dó. Si seus passos fizessem acorde, talvez pudesse conseguir o sol. Por fim, combateu o excesso, por si e só. Só queria chegar lá - fim. Então ficara novamente livre. E por que era assim? Não aguentava ser espelho. Ele queria ser andarilho de carne e osso, desfotônico. Quebrá-lo feria o silêncio e teria de ser aos poucos – fragmentação velada. Talvez fosse esse o estado latente daquele ser – em cacos. A expressão de minhas palavras sobre sua história tentam ser assim. Pedaço. Partido.

Era uma vida difícil a levada pelo andarilho. Deveria orquestrar as canções, ser maestro até de si mesmo quando ainda se era aprendiz. Seu sonho não era fazer parte do coral dos cancioneiros, seu sonho era não estragar as canções. Ele trabalhava árduo para isso.

Suas mãos dançavam frente as ondas e davam-lhe ordem. Era uma autoridade outorgada. Mesmo assim ele ia em frente, com as mãos girando a esquerda e a direita, os cabelos, aqueles sim, continuavam a dança, cada vez mais retraída. Começava-se a ver a partitura, escrita por um especialista que deduz a canção ouvindo sons e traduz.

De repente, não mais que isso, o andarilho chegara perto de um lago cristalino e se assustou. Parou então de andar – logo deveria de ser algo muito importante para interromper tal fluxo. Algo divino havia acontecido. O andarilho pudera enfim ver seu reflexo no lago. Sua lágrima agora feria o silêncio gerando ondas também ritmadas, circulares. Pudera sentir finalmente a felicidade da sua canção. Ficara então aos prantos sentindo-a tão perto, tão sua. Não tinha mais medo. Si chegara finalmente no fim – lá. Tamanha era a felicidade tamanha era sua canção. Uma canção cancionada pelo mundo? Era o filtro dessa canção. Não era mais oco, tinha em si, si mesmo, não tendo mais si. Era um paradoxo mais presente que nunca no meio das canções.

Sabe de uma coisa? Foi emociante acompanhar a trajetória desse homem – não era mais um andarilho, era o Homem. Pude aprender enfim uma lição que levarei para toda vida: Mesmo que sua canção seja desafinada, mesmo que tenhamos que ouvir canções, não podemos esquecer que cada canção tem a sua particularidade e beleza; que não podemos deixar nossa felicidade de lado e agradar gregos e troianos; que fazemos parte de um mundo com variedades de instrumentos, queiram ou não. Aprendi enfim que cada um é capaz de fazer a partitura da vida e que cabe apenas a nós harmonizar, apenas a nós. Meu coração, agora, seguirá minha própria canção – numa rima que também é só minha.

João Carlos Fonseca
Enviado por João Carlos Fonseca em 19/07/2009
Código do texto: T1707278
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