A Praça
Foi quando deitei para esperar Marina. Em um dos bancos daquela praça, cheia de histórias já contadas, fiquei parado buscando algo com que me distrair, nada me parecia agradável. É que o inverno às vezes cria uma nevoa romântica em tudo que vejo, só penso em amor, amor, amor, e transformo todo o contexto em dor. Sinto algo de Carlos Gardel nos meus ouvidos. Nesses dias me vejo em Palermo, mi Buenos Aires querido, esperando Marina chegar.
Lembro de ter fome, meus sentidos estavam aguçados por todo aquele frio, como era bom sentir meus lábios rachados. Ela poderia trazer o chimarrão, seria tão bom um beijo quente com aquele cheiro de mato molhado. Mas acho que só a presença bastaria. Eu tanto queria, que comecei a disfarçar, para mim mesmo, a infantilidade do sentimento, dei um toque de Hilst aos pensamentos. E de repente o rosto de Narciso se virou para a direita seguindo o movimento de seu corpo que se sentava no banco.
Bastaram cinco minutos para notar que a praça estava limpa, que um cachorro andava com pelos lisos e amarelos e que as pombas já não eram tantas como foram em outros tempos. As pombas me visitavam em maior número quando freqüentava a praça para andar de bicicleta. Minha mãe me comprava pipocas fingindo que não sabia que todas seriam dadas para as pombas em pequenos punhados de minha mão infantil.
Foram necessários dez minutos para notar que rolara uma lagrima por ali. Um gari varria a praça como se junto àquelas folhas deixasse um pouco de sua vida varrida. Poucos reparavam nas lagrimas, talvez porque elas caíssem silenciosas e não incomodassem a vizinhança, talvez porque o cachorro as ofuscasse. Lembro que em seu rosto havia tanta dor que chegou a doer em mim, ali havia dor para toda a praça e sua história, mas ninguém a escreveria em livros didaticos.
Qual seria o seu mistério doloroso? Nunca havia visto um gari chorar, não deveria ser por qualquer coisa. Mas se fosse? E se fosse um amor não correspondido, ou a lembrança nostálgica de um momento? Poderia ser saudade. É fácil chorar por saudade, eu que já chorei tantas vezes. Sofrimentos de um gari. Minhas aulas de antropologia começaram a se passar em minha cabeça, eu que estudei tanto, nunca havia reparado no choro de um gari. Era diferente do meu, mas era igual ao meu. Mesma forma e conteúdo, mas tinha forma e conteúdo diferente. Não era o meu choro. Não era?
Escorria da ponta de seu nariz a dor imensa de um homem, um homem que me tomara o lugar, que havia conquistado quando me deitei no banco, tendo todos os motivos do mundo para chorar. Uma pessoa que compartilhava a praça comigo e eu por pouco não notei, e como já não notei muitos pelos quais eu passo, chorando com a pureza de uma criança, mas a tristeza daqueles que tem plena consciência do que é o mundo, ou pelo menos o que o mundo é para ele. Poderia ser um pai, tinha jeito duro, não parecia ser uma pessoa que chora. Por que uma sobrancelha grossa me fazia achar que a pessoa não tem lágrimas? Minhas sobrancelhas são grossas. Mas não deve sobreviver aquele que não chora, e aquele estava vivo, pelo menos foi o que eu vi.
A sua tristeza deixava a praça limpa, e eu nunca tinha agradecido por isso. Agradeceria pela tristeza de uma pessoa? Isso me soou meio sádico, me lembro, resolvi apenas observar. Eu não conhecia aquela tristeza, não poderia entender e muito menos recriar, era uma tristeza única, a tristeza de um gari. Desde então minhas tristezas iriam mudar. Só me restava mesmo observar, pois não há, senão o homem, outro animal com tal nível de curiosidade.
Corria todas as folhas molhadas para um lado, oposto ao que tinha deixado o lixo, não sei se era o jeito mais prático, mas não há logística melhor do que a feita por quem faz aquilo a tanto tempo (será que ele fazia?). Todas sobrepostas pareciam algo feito por um menino que se jogaria sobre elas e as jogaria para cima. Estaria ali um menino-homem? Quem era eu para julgar bom ou mal, menino ou homem no meio de tantas lagrimas, e será que eram tantas mesmo ? É que às vezes estranhamos o diferente, talvez aquilo nem mesmo fosse uma grande coisa, eu nunca havia visto um gari chorar.
Ouvi alguns passos. Era Marina chegando, sem chimarrão, e pelo semblante, que a primeira vista lembrou minha mãe, depois Freud e Sófocles, devia estar brava com alguma coisa. A última vez que isso acontecera havia sido culpa de alguns contratempos no trânsito, pela hora haveria uma nova exibição dos 10 minutos da semana anterior, mas pela previsibilidade, quase nula, de Marina deveria ser algo relacionado com seus sapatos ou com a falta de meu amor. Pouco importava para o Florentino Ariza sentado no banco da praça. Enchi meu rosto com um sorriso bobo e abracei Marina com uma força somente descrita por Garcia Márquez.