O ÚLTIMO NATAL DA FERA

Todas as personagens individuais deste conto são de mera invenção minha, sendo que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência

O ÚLTIMO NATAL DA FERA

Sejam bem vindos às trevas

Algures na floresta das Ardenas, França, 25 de Dezembro de 1945.

Henrich treme de frio, de medo e de alguma (pouca) excitação. Tem 24 anos e é um jovem Capitão das S.S, e aquele é o seu sexto natal de guerra. Por indicações dum Major mal disposto, calhou-lhe a sorte de estar de serviço naquela noite; tarefa simples para um veterano como ele ir de sentinela em sentinela ver se tudo está a correr bem, voltar para o abrigo, beber um pouco de água-ardente para aquecer, descansar outro tanto e voltar ao giro. Nada de especial, nada que não tivesse já feito, mas desta vez sente que é algo diferente, pressente que é algo diferente…Talvez pela perspectiva do fim da grande aventura armada que deixou a Europa de rastos e o mundo diferente para sempre; talvez, embora esse sim seja veementemente negado pela propaganda Nacional-Socialista (que lançou esta ofensiva nas Ardenas como prova disso), apesar das nítidas evidências desse fim: as cidades alemãs dizimadas pela aviação aliada estão de rastos, a indústria num estado semelhante, e os Russos, os temíveis russos estão às portas da Alemanha nazi.

E ele, no que é que este homem novo, mas de vivências semelhantes a um velho, acredita? Doutrinado desde os 12 anos na ideologia Hitleriana, e fazendo parte do escol de combate do regime (as S.S), viveu as vitórias fulminantes do regime pessoalmente: combateu entusiasticamente na Polónia e Noruega em 1939, com euforia assistiu à queda da França em 1940, em delírio foi membro integrante dos exércitos que quase derrotaram a União-Soviética em 1941, sendo que a partir de ai tudo começou, numa primeira fase, a correr menos bem em 1942, e depois a correr mesmo mal de 1943 em diante, sendo que nessa altura o entusiasmo se transformou em quase ausência de emoções, num combater mecânico, porque essa era a única coisa que sabia fazer, combater, combater estoicamente, loucamente, apesar da causa perdida e para disfarçar a falta de crença que era suposto um S.S não ter…

Viu e viveu demasiado, participou em alguns massacres, não por razões ideológicas (como os seus camaradas motivados) mas por obrigação disciplinar e afectiva ao grande REICH que o havia criado desde a infância.

Pelo meio desta enorme confusão a que os historiadores chamaram 2ªGuerra Mundial, ele teve tempo para o amor, para amar Greta que conhecera numa licença, para casar com ela e para gerar um filho, a quando de uma baixa por ferimentos. Eram eles o seu capital de humanidade que o impediam que o impediam de enlouquecer, de se transformar numa besta, quando os combates o impeliam a isso, eram eles que o faziam sorrir quando nada mais o conseguia, eram eles que o faziam sonhar pela paz eternamente adiada, eram eles quem ele recordava neste turno que nunca mais acabava. Com os minutos de pausa ainda arranja tempo para ler a última carta de casa. Lá, embora a censura do Reich nunca o permitisse, estão implícitas as duras condições em que o povo alemão passou a viver, a crueza do fim das cidades, do desaparecimento de mais alguns vizinhos depois de mais um bombardeamento das gloriosas forças aéreas americanas e inglesas, que com razões sem razão passaram a arrasar não só as indústrias, mas centros populacionais inteiros, onde vivem milhões de pessoas inocentes, cujo único crime foi terem vivido no território nazi. E ele sabe, sabe bem demais porque perdeu os pais há meio ano num desses bombardeamentos, autênticos crimes que nunca serão de guerra porque foram feitos pelos vencedores; mas nessa carta também há uma beleza sem tamanho nas notícias da sua querida mulher e do filho lindo, que todos estão de saúde, e que esperam para que ele volte para o futuro deles, beleza ainda mais realçada pela fotografia que vem junto da missiva, e que o fazem sonhar pelo fim do inferno, que o fazem sair mentalmente daquele lugar e mentalmente passar o Natal com eles. Sentindo isto, ele não podia deixar de guardar a carta noutro lado que não fosse num bolso junto ao peito, ao coração, por uma questão prática e sobretudo por amor, para sentir o amor deles, para poder ter um Natal minimamente humano, um Natal no qual (pensa) se Deus existe só pode ser um Deus sádico, por jogar tão dementemente com a vida dos seus filhos, ou então o Deus pagão da guerra, Marte. De qualquer das formas Henrich não acredita nele porque o nazismo lhe ensinou isso, porque depois do que viu nesta guerra não acredita nessa presença divina ao filho do qual é dedicada esta noite.

Nas derradeiras horas do turno o Capitão descobriu que de facto deixou de crer no Nacional-Socialismo que incendiou a Europa, e que por isso também se incinerou a si próprio, e sente-se mal, sente-se oco, vazio, sente como nunca, sente uma enorme culpa pelos homens que matou, mas nunca será culpado pelos tribunais de excepção que os Aliados instaurarão certamente para julgar as S.S, porque estas são demasiadas, porque bastará apenas julgar algumas chefias e os soldados mais sádicos para o planeta respirar de alivio pela hipócrita justiça feita…Não, o único julgamento a que ele será sujeito será ao da sua consciência, à pena de ter de reviver até ao fim dos seus dias os rostos dos que matou, e que transformarão para sempre os seus sonhos em pesadelos…E pelo futuro jamais poderá contar a verdade ao filho que ama tanto, porque correrá o risco deste o odiar…

É Natal! Caramba, há que comemorar pela sua família! Saindo do abrigo trauteia uma canção da época pré-nazi, da sua infância e é invadido por um enorme bem estar, e jura secretamente que nunca mais voltará a correr riscos desnecessários, para poder voltar para aqueles que constituem a única réstia de luz na sua alma apodrecida pelos anos de combates.

Avança animado por entre um denso nevoeiro, que só o deixa ver cinco metros, preparando-se para cumprimentar a última sentinela antes de se ir deitar. É um jovem de dezasseis anos das Juventudes Hitlerianas, que a guerra foi buscar à escola, filho de um antigo camarada morto nos primeiros dias da campanha Russa. Primeiro o pai, depois o filho, estes canibais políticos nazis não param! O que se seguirá a seguir? Obrigar primeiro os velhos e depois as mulheres e as filhas a lutar pelo Império perdido? -Protesta mentalmente contra o Estado hediondo que o criou, à medida que se vai aproximando do proto-soldado; animado pelo fim do turno dirige-se à escuridão onde ele está, mas nada. Certamente adormeceu, e por mero instinto de batalha solta o botão do coldre. Do escuro sai por fim um vulto de camuflado branco no qual reconhece insígnias americanas. Num ápice saca da pistola, mas em vão. Uma potente rajada de metralhadora rasga o ventre e rouba a vida do Capitão Nazi que naquela noite deixara de o ser.

É meia-noite de 25 de Dezembro de 1944, a guerra acabaria dai a 4 meses.

Conto escrito durante o Natal de 2003