A Borboleta da Meia-Noite

A cidade reluz de tal forma que aparenta uma disputa entre o Homem e o Sol.Entre o Homem e as forças naturais.Uma guerra que se segue desde o início dos tempos.Conflitos sutis ou claramente visíveis parecem ser o alicerce da condição humana. Schopenhauer, Nietzsche e Sun Tzu são de fato atemporais.Seja por querer a atenção de uma pessoa em especial ou por desejar ter a total dominação, o total controle do meio em que vive, o Homem trava uma guerra constante por razões e meios cuja benevolência ou crueldade dependem do ponto de vista.A famigerada ambivalência humana...sim, em todo o campo existencial o Homem é essencialmente um guerreiro.

Enfocando e levemente alterando essa linha de pensamento, posso dizer que sou...um guerreiro vencido.Vencido e enclausurado física e psiquicamente neste quarto com paredes, móveis e eletrodomésticos que sofreram a implacável ação do tempo.Tempo, supremo ditador, implacável carrasco.Olho para o relógio analógico em cima do criado-mudo. Um despertador.Parado.Um despertador que não mais despertará.Observo pôsteres com semidivindades fabricadas.Soa levemente exagerado usar tal denominação, mas os músicos, os heróis da vida real que vejo me fazem relembrar de que eu queria, e talvez poderia ser um deles.Poderia.

Conhecer o inimigo e também a si mesmo.Uma lição que aprendi...tarde demais.Desconhecendo quase que completamente a mim mesmo, deixei que os inimigos me ferissem e se unissem tornando-se as impurezas da lâmina do meu inimigo interior, o meu “eu-inimigo”, deixando-a forte o suficiente para desferir o golpe definitivo que dilacerou o meu âmago.Um golpe que me infligiu um castigo pior do que a morte, pois até para ela meu “eu-inimigo” me fechou as portas.O medo, o veneno com o qual a lâmina do “eu-inimigo” parecia estar impregnada invadiu de dominou o distorcido e aparentemente insolúvel quebra-cabeça no qual se tornou o meu ser.

Algumas pessoas, algumas filosofias, algumas religiões dizem que o mundo nada mais é do que uma projeção dos nossos próprios pensamentos.Pois bem.Começo a acreditar em tal afirmação, ainda que com a minha própria interpretação.O despertador analógico, em especial, representa perfeitamente o meu âmago, ao passo que todos os outros elementos do quarto representam a minha dimensão subjetiva, e estaria completamente fechado para o mundo externo não fosse uma janela.A janela que me permite vislumbrar a cidade radiante.Ainda mais radiante nesse momento, pois o calendário gregoriano presenteou as pessoas com um dia especial que simboliza o fim de um ciclo e o início de outro em que muitos esperam que seja melhor do que o anterior, embora nem todos se esforcem para tanto. É a noite de trinta e um de dezembro.Um momento de celebração que canaliza um círculo vicioso de sonhos, promessas, vitórias, derrotas...uma data que enfatiza o desejo intrínseco em todos os seres humanos:o desejo de ser feliz.

Em total contraste com os jogos de luzes da cidade, o que há de mais brilhante no meu quarto é um relógio digital indicando os minutos finais do ano com números que se assemelham a agrupamentos de faíscas vermelhas, como pequenas fagulhas de ímpeto que ainda podem existir em algum lugar dentro do meu âmago...um lugar aparentemente inacessível.Fito o relógio desejando que ele simbolize o fim desse sofrimento que o veneno do medo e os ataques do meu “eu-inimigo” e outros agentes e fatores me infligiram, deixando-me paralisado e condenado a viver em uma tétrica realidade cujo negrume me impede de ver qualquer ponto de uma verdadeira luz.A minha compenetração nos números vermelhos é interrompida por uma contagem regressiva bradada em uníssono.

Então...é meia-noite.Contudo, o grito de “Feliz Ano Novo” soa-me abafado, pois vislumbro algo insólito.Insólito, porém belíssimo.

Uma borboleta.

Eu vejo uma borboleta, que na minha visão se destaca de todas as luzes ao fundo, com belíssimas asas de cor azul celeste com abstratos, porém lindos traços luminosos.Ela pousa na janela, e fitando-a sinto algo que parecia perdido dentro de mim por anos: uma fagulha...de alegria.Estou tão compenetrado e absorvido pela beleza da borboleta que tomo um pequeno susto quando ela subitamente levanta vôo...na minha direção.A luz emanada da borboleta torna-se mais forte a cada bater de asas, até que fico impossibilitado de ver qualquer coisa que não um plano monocromático cuja intensidade me faz fechar os olhos involuntariamente por um breve momento.Quando eu abro novamente os olhos vejo...

Como dimensionar com simples palavras essa visão...a borboleta tomou a forma de...um anjo.Sim um anjo.Pouco para descrever a visão da mais bela mulher que eu já contemplei em toda a minha vida.

Uma reluzente vestimenta que aparenta cetim cobre um corpo visivelmente delineado como o desenho de um exímio artista.As dimensões de seu corpo, no entanto, não me despertam sentimentos excessivamente luxuriosos, pois me deparo com um semblante verdadeiramente angelical com linhas harmoniosas e delicadas emoldurado por ligeiramente longos e sedosos cabelos.Lindos olhos me fitam como que dissessem sem usar palavras que ela está presente para me fazer ver um novo caminho.

Aos poucos eu assimilo a acalentadora interferência na minha realidade.A interferência de um anjo.Um anjo com asas de borboleta, uma presença cujas asas simbolizam uma força que faz desvanecer as nuvens cinzentas de tantos sentimentos que me tornaram um ser taciturno e debilitado.Eu sinto como se um lindo céu azul estivesse se revelando.E o sorriso da dama angelical torna-se o sol que completa esse céu e faz a minha mente denotar outra nuance de sua presença: uma mulher com imensurável pureza que remete a uma manifestação de poder e amor.Uma manifestação que me faz relembrar...de uma força superior que o ser humano convencionou denominar Deus.Sinto que os fragmentos do meu âmago estão se unificando novamente por conta de tão radiante presença.O anjo com asas de borboleta diante de mim revela de forma silenciosa que eu definitivamente não estou sozinho.

Ela dá um passo.Outro passo.Ela se aproxima de mim, e cada passo me faz sentir que...um ciclo está no final.Ela para diante de mim, e levanta as mãos com um harmonioso movimento em direção ao meu rosto, acariciando-o. Sinto como se a luz estivesse me rodeando e começando a dominar definitivamente o meu ser e a minha realidade.Meus olhos estão completamente compenetrados no semblante angelical.E ela também me fita com uma expressão radiante.Então vejo que sua face está lentamente se aproximando, até que...

Um beijo.A luz.A luz me dominou por completo.Um gesto de divina pureza, o fragmento que completa o meu âmago.Um beijo, a chave que destranca os portões que me aprisionaram dentro do meu próprio mundo sombrio.Asas.Sinto nascer asas.Asas tão reluzentes quanto as do anjo que me deu o mais puro beijo.Vejo a realidade onde vivi por anos a fio transformar-se em ruínas.Ruínas que eu deixo para trás levantando vôo rumando para uma outra realidade que vejo graças ao anjo com asas de borboleta, cujo puro e divino beijo definitivamente selou o meu destino.

Daniel Bluesolder
Enviado por Daniel Bluesolder em 18/07/2009
Código do texto: T1706243
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