Uma questão para o Conselheiro.
Os fatos que vou narrar a seguir ocorreram em circunstâncias especiais, quando uma sucessão de promoções e óbitos deixou a província sem a atenção do Encarregado do Procurador Notarial, responsável pelos registros de nascimento, casamentos e óbitos.
Havia cinqüenta anos que o Partido Central determinara a limitação de descendência em um filho por casal, o ato legal previa uma segunda gestação em casos de óbito e estimulava as intervenções contraceptivas de caráter irreversível como forma de controlar a explosão demográfica que ameaçava os recursos e o regime.
Por três anos a Província ficou sem as visitas regulares, não havia registro de nascimento ou óbito; os casamentos eram registrados no templo e posteriormente homologados pela autoridade notarial. O último encarregado do procurador era uma figura austera, que não permitia qualquer proximidade com a população inspecionada.
Alimentava-se em estabelecimentos públicos, dormia em hospedarias e cadeias; tinha um senso de dever apurado e não fazia qualquer concessão sobre os limites que a legislação determinava. Tamanha probidade o elevou a condição de Encarregado-mor e principal auxiliar do Procurador Notarial Geral na elaboração dos números que subsidiariam as ações do Partido na província.
O seu sucessor após uma escrupulosa preparação caiu em desgraça por conta de incorreções descobertas pelo funcionário que o precedeu, havia fraudes e subornos que conduziram o substituto do encarregado a uma longa pena de reeducação e trabalhos forçados.
A última indicação do Procurador faleceu subitamente após um jantar na casa de um artesão na sua primeira semana como Encarregado da província, assim, de vacância em vacância correram três anos...
As pequenas propriedades rurais eram cultivadas por famílias organizadas em comunas; após algumas gerações tais comunas se ordenavam como clãs, mantidos pela união matrimonial e pelo trabalho comum realizado na propriedade.
A província sequer anunciou a nomeação do novo Conselheiro Encarregado; ele chegou cedo e se trancou na estalagem por um dia inteiro, se alimentou de carnes conservadas que trazia consigo, pediu água quente para o chá e dirigiu-se ao templo para homologar os casamentos e relacionar as novas células familiares em sua província.
O monge celebrante era o responsável por todos os ofícios do templo, e por suas tarefas conhecia mais estes seres esquivos, que se tornaram os Encarregados.
O monge percebeu pela caligrafia apurada e ligeira a presença de um homem de estudos mais abrangentes; deduziu por suas perguntas um conhecimento maior que o necessário para a função. Quando deu por encerrada a sua tarefa despediu-se formalmente do monge se escusando de partilhar a ceia no templo e ainda ofereceu um donativo incomum para os agentes da Procuradoria.
O tempo que se seguiu apresentou um homem disposto, ao qual nada escapava; suas interrogações eram verdadeiros ardis, costumavam revelar as mais engenhosas artimanhas e contradições dos comportamentos delituosos.
Suas recomendações de sentença eram prescritas a risca pelos comitês de ordem, seu senso de ordenação permitiu que algumas propostas da província fossem realizadas pelo Partido Central e aquela figura admirada e temida em pouco tempo se assomava aquele povo.
Quando ao final de uma estação com colheita abundante e clima ameno ele recebera a correspondência do Procurador Notarial Geral colocando sob sua custódia um homem que em desobediência a legislação de descendência tivera secretamente mais de um filho.
Conforme o processo recebido, um coletor de obrigações comerciais tivera dois filhos num mesmo ano, registrara apenas um e manteve o outro secretamente guardado em sua casa, tudo sairia a contento, não fosse à inspeção das instalações sanitárias que revelou acomodações para duas crianças. Questionado sobre o fato, o funcionário revelou toda verdade e se submeteu as penalidades impostas.
Ao pensar nos filhos do Coletor, imaginou a relação de irmãos, suspensa por um ato de ofício criado pelo partido; na conseqüente eliminação dos tios e sobrinhos, e de como esta conformação encerrava a família em si mesma.
Os percalços que estancavam toda uma descendência, uma calamidade que sepultaria toda a história de uma região, e tudo o que foi proclamado pelos atos, pelos laços e pelas religiões.
A mulher foi conduzida para a reeducação por um período de cinco anos, as crianças foram enviadas para um templo taoísta que demonstrara interesse em cuidar das crianças e quanto ao funcionário, pelos serviços prestados e pela condição de educação e treinamento decidiram aproveitar seus conhecimentos em outra província sobre as ordens do Conselheiro Encarregado. A seguir havia os dados do funcionário.
Fluência em algumas línguas estrangeiras, educação jurídica, inúmeras viagens e experiência em transações comerciais em larga escala; justificava-se assim o interesse do partido em preservar o homem.
Atentando para estas anotações o Conselheiro imaginou a educação daquele homem muito próxima da sua, e se permitiu pensar numa interessante expectativa pelo encontro.
A escolta que trazia o custodiado só poderia conduzi-lo até o Conselheiro e então teria apenas um dia para deixar a província, conforme as leis para os deslocamentos de forças regulares em missões internas; estes expedientes diminuíram os saques e crimes cometidos pelos homens do exército e tirou as responsabilidades dos comandantes e passaram-nas para os chefes de guarnição.
Desta forma as guarnições realizavam suas missões rapidamente, de forma a preservar seus comandantes e evitar a acusação de insurreição ou deserção; que era sentenciada com rigor extremo nestes tempos.
O comandante da guarnição chegou pela manhã e encaminhou o custodiado para o ajudante do Conselheiro que após a formalização da transferência seguiu para retornar sua guarnição ao comando a que pertencia.
O ajudante recebeu um homem cansado, com barbas e cabelos bastos, olhar baixo e gestos contidos; seguindo a determinação do Conselheiro ofereceu-lhe aposentos e condições para apresentar-se com dignidade ao seu novo tutor.
Após banho e barba foi conduzido a uma modesta cozinha onde fez uma refeição frugal e silenciosa, desde sua chegada, o silencio era a marca mais sentida de sua presença.
Assim silencioso e contido chegou à presença do Conselheiro Encarregado, que o acercou de forma especulativa e sem dizer uma palavra sequer, tremeu diante daquelas feições altivas e tristes, que copiavam de forma fiel o seu próprio rosto.