O Violinista Suicida
Ele se levantou lentamente da cama e encaminhou-se para a cozinha. Mas não ia buscar o seu habitual café da manhã. Até mesmo porque eram três horas da madrugada, e o café só sairia horas depois. E ele não estava ali para esperar, pois já havia esperado durante anos, não pelo café da manhã, mas sim por uma mudança em sua vida. E ela não viera.
Encaminhou-se finalmente para a sala, e abriu a porta que dava para o quintal. Saiu e o vento gélido e sombrio da madrugada apossou-se de sua pele, de forma que seu primeiro instinto foi voltar. Mas aquilo era apenas um aviso de que ele havia esquecido algo. Olhou para o interior da casa e lembrou-se: precisava pegar o estojo que deixara no dormitório. No mais absoluto silêncio, foi até lá e pegou-o, mas aquele momento parecia para ele uma eternidade, pois somente ele separava aquele jovem da liberdade absoluta. Rapidamente, como que querendo livrar-se de uma vez por todas daquela angústia final, ganhou a rua e saiu, no escuro ainda, a vaguear pela cidade.
Ele nunca havia andado sozinho na rua por aquelas horas. Mas não sentia medo. O que poderia lhe acontecer? Não havia nada com ele que pudesse ser roubado, a não ser o velho violino que havia dentro do estojo. Mas aquele instrumento não era valioso, pelo contrário, ultimamente andava precisando de uns ajustes, umas cravelhas novas e mais resistentes. Mas ele nem se importava. Aquele era o seu violino.
Caminhando, na monotonia típica de uma cidade vazia, porém com um delicado ar de sombria, o garoto ia pensando em nada mais que o passado. Na família, por que não? Ele se lembrava dos passeios aos domingos, das visitas ao zoológico e das preces que sempre fazia à noite, antes de dormir. Lembrava-se dos amigos, dos encontros nas praças, das piadas, dos momentos de união, enfim, da vida. Lembrava-se de seus poucos e suaves casos amorosos, que não haviam acrescentado muito para sua consciência, mas que de certa forma se fizeram inesquecíveis.
Mas, como foi dito, aquilo era para ele um passado. E ele sempre dizia que não conseguia viver em fases de decadência. Estava ali para fazer isso valer.
Durante horas aquele garoto caminhou, no frio, vivendo durante cada segundo toda a sua vida novamente, mas agora, como por milagre, sentia que tudo estava mais real, que agora sentia realmente as emoções que achava que antes havia sentido. Apaixonara-se novamente, e novamente tivera a mesma desilusão, esteve em todos os passeios, em todas as festas novamente, mas agora de uma forma intuitiva e pura, em um recanto onde não dominava a razão, onde tudo era regido pelo ritmo tranqüilo e destacado de seus pés no asfalto, somente com as lembranças que guardava (e eram muitas), e vendo novamente, de maneira quase nítida, todos os rostos que conhecia, aparecendo e sumindo em meio à neblina. E vendo como tudo havia sido em vão.
Tudo havia sido em vão, porque agora, no momento mais especial de sua existência, estava ele ali, sozinho, sem amigos, sem família, sem ninguém com quem pudesse compartilhar suas lembranças e seus últimos sentimentos. Que sentido havia tido aquele dia de diversão, ou de melancolia que fosse, se agora ele havia perdido tudo, até mesmo as esperanças?
Sua única companhia era o violino. Reconheceu, então, que de todos os amigos que tivera, de todas as pessoas que conhecia, de todas as mentes que admirara, de todos os dias que vivera, a única coisa que lhe havia sido fiel era o violino. Sim, o velho violino que lhe acompanhara durante a infância e adolescência, e que ultimamente estava algo desafinado, até mesmo arranhado, só ele estava ali. Só ele era realmente seu amigo, seu fiel companheiro, e quanto tempo de sua curta vida havia perdido com os outros! Durante tanto tempo sendo enganado, e o objeto mais divino do universo confinado em um estojo velho e sujo. Não, aquilo não era justo, de forma alguma.
Tirou o violino do estojo, alinhou o arco e recomeçou a andar. O estojo ficaria ali, para toda a eternidade se dependesse dele, como o túmulo que tanto tempo esperaria por seu herói, que nunca chegaria.
O frio ainda estava intenso, mas aquilo não importava. O que ele queria era abreviar logo aquilo tudo. Não pensaria mais, pois ele estava a fazer isso durante a vida toda, sem nenhum retorno. O que queria era simplesmente parar de sofrer. Porém, olhou mais uma vez para o violino, e não achou justo fazer aquilo. Começou a conversar, cochichando, com o instrumento. Ele não respondia, mas não havia dúvida de que compreendia o motivo de todo aquele sofrimento. O garoto parou de caminhar, levantou o arco e desceu suavemente pela corda lá, com o segundo dedo livre a fazer um vibrato como nunca antes havia feito, os pulsos doendo pelo frio, mas movimentando-se decididamente e de forma elegante: as duas notas seguintes, na mesma corda, anunciaram o ré que arrancaria daquele garoto uma lágrima do fundo da alma: aquela era a fantasia em dó maior, de Schubert. A música da sua vida.
Os compassos seguintes foram tão sentimentais quanto o primeiro. O velho Eagle parecia esquecer suas limitações e não se limitava a fornecer o som preciso de sempre, mas agora simplesmente chorava suas notas, numa melodia extremamente aveludada, como só se ouve dos lendários Stradivarius, empunhados pelos melhores violinistas do mundo. Mas o que fazia aquela música tão fascinante não eram a técnica do executante ou o desempenho do instrumento, que eram admitidamente limitados, mas sim a clareza poética da melodia, tão genial, que de forma tão perfeita representaria uma vida.
A cada novo pentagrama, que o garoto memorizara sem dificuldade, um novo episódio de sua memória era impresso nos ares, por um curto momento, mas com uma emoção capaz de durar para sempre. Ele não estava fazendo outra coisa senão conversando com seu instrumento. E como eles tinham o que falar...
Como ele não havia pensado naquilo antes? Podia conversar com seu melhor amigo, e ele sabia fazer isso! Era o que estava fazendo agora. A cada movimento, fechava os olhos e esperava pela resposta que ecoava de forma extremamente harmoniosa e suave de dentro da caixa acústica, através dos furos “s”.
Mas a música estava terminando, e com ela sua vida. Terminou de viver, pela segunda vez naquele dia, toda sua existência novamente. Mas agora o violino já estava a par de tudo e não impusera nada. Concordara com tudo que fosse feito, era o que dizia no final da música, no último arpejo. Já havia tocado a música de sua vida, agora só faltava tocar a de sua morte. Mas essa, só ele saberia compor. Ou melhor, improvisar. Ergueu o arco e seu violino não negou um generoso e harmônico som, grave e aveludado, que iniciaria seu prelúdio fúnebre. O começo foi enérgico, e as duas cordas mais agudas acabaram por partir-se, não acompanhando o virtuosismo ainda imaturo do garoto. Nas cordas sol e ré, a melodia se tornou cada vez mais melancólica, e as lágrimas passavam a empoçar-se no chão. Previu que sua morte estaria no próximo lá bemol, mas não queria evitá-lo. Parece que seu corpo, no entanto, queria evitar o fim, e seus dedos não se abaixavam na corda sobre a nota mortal. Começou a andar para todos os lados, desenfreadamente, tocando energicamente e sem parar, em sua última passagem virtuosística, com os olhos fechados, até que, com um esforço sobre-humano, abaixou o dedo sobre o lá bemol. Não chegou a ouvir seu som, no entanto, pois a última nota daquele pequeno violinista foi abafada por uma rústica e fatal buzina, a do caminhão que o matou.