Relato cego
10º andar. O dia está perfeitamente ensolarado. Pela vista privilegiada que Cezar desfruta no momento, não vê uma nuvem sequer. A luz do sol atinge os prédios espelhados, deixando-os com uma camada de luz fortíssima, fazendo qualquer ser humano desviar o olhar procurando pelo mínimo de escuridão possível. Pombos pretos, brancos e mistos voam de lá para cá, sem rumo, apenas buscando alimento. Numa esquina movimentada logo adiante, a enorme roda de um caminhão de mudanças é o indiferente fim de um deles. Como um balão o pombo se desfaz no cinza do asfalto denegrido pela natureza e pela vida parasita que toma conta de tudo. Alguns pedestres olham a cena com nojo, outros se colocam no meio da rua para apreciar o feito mais de perto, o sangue em contato com o solo fervendo o fez secar rapidamente, não o permitindo construir uma trilha que levava a qualquer lugar, aos pés de um homem bem sucedido qualquer que olharia, pularia exalando o ar típico de um cidadão de bem e com um sorriso apaixonado avistavasse a mulher amada do outro lado da rua, e junto dela se colocaria dentro de um bar qualquer e pediria uma taça de vinho tinto; uma celebração a união amorosa e porque não a união de dois tipos sanguineos distintos envoltos a qualquer ilusão imposta por um sentimento inconveniente. Na praça mais a frente as pessoas caminhando se abanam, tentam de qualquer maneira enfrentar o calor insuportável do mês de fevereiro, tomam água mineral. Litros e litros de água mineral refrescando o organismo podre de um milhão de homens cujo o que há de mais seco e quente nos mesmos, nem água benta poderia aliviar. Nas duas últimas horas, essa mesma janela onde Cezar observa tudo isso é sua morada; por alguém ele aguarda, alguém que nunca retorna. A cortina branca está parcialmente fechada, impossibilitando alguém que caminhe pelas ruas logo abaixo enxergar um vulto sequer do homem que tem junto a si, sentado em seu ombro esquerdo, um demônio em miniatura que sempre nas horas mais oportunas lhe diz o que deve ou não ser feito.
Uma linda garotinha aparentando ter no máximo 10 anos, usando um vestido vermelho, corre pela calçada do lado oposto ao prédio em direção a uma carrinho de pipocas. Ofegante pela corrida, ela para, sorri para o homem gorducho e mal vestido que prepara as pipocas e diz algo; provavelmete foi comprar um saquinho. Por um instante Cezar se distrai com a garota e pensa em todos os riscos que a pobrezinha neste exato momento está correndo sem a mínima possibilidade de defesa, sem a mínima possibilidade de fugir. Pensa na vida que essa garota levará, pensa se ela é mais uma condenada, escolhida a dedo por alguma força supostamente maior a viver em desgraça nesse mundo onde nada é o suficiente para se atingir algo plausivamente aceitável, onde não importa o que se faça, as circunstâncias jamais permitem uma feliz solução, um ponto no horizonte que se valha a pena chegar sem que uma gota de sangue ou lágrima seja derramada. É a ingratidão e a eterna insatisfação que fazem as pessoas viverem em desgraça e tristeza. Este pensamento sempre esteve junto de Cezar ao longo de toda sua vida, para ser mais exato desde quando ele passou a entender como de certa forma o mundo gira (ao seu redor). A garotinha volta pelo mesmo caminho que fez correndo, porém agora andando calmamente com as duas mãos lotadas de pipoca. Ela não foi comprar, foi pedir. Vendo isso Cezar já teve ciencia que a desgraça já estava caminhando a seu lado e provavelmente caminhará pelo resto de sua vida. Mais adiante uma cota de desgraça surge; um garoto bem maior que ela, negro, vestindo roupas que chegam a dar nojo se aproxima da garota e lhe diz algo; ela para, olha para os lados e também diz algo, porém antes mesmo de terminar sente o impacto da mão do rapaz em seu braço fazendo toda a pipoca ir ao chão, logo servindo do mais saboroso alimento para a grande maioria dos pombos que ainda voavam de lá para cá, incansavelmente. O rapaz se afasta rapidamente, a garota chora, algumas pessoas olham tudo e fingem não ver (eu também fingiria). Uma moça vestindo trajes ridículos se aproxima da garota e se põe a conversar, mas a garota a afasta com as duas mãos e com o rosto banhado em lágrimas vai até um canteiro há alguns metros de onde estava e apanha um enorme pedaço de madeira, quase de seu tamanho. Corre em direção aos pombos e desfere um golpe; esmaga a cabeça de um deles fazendo-o se retorcer pelo chão durante alguns segundos. Boa parte das aves levantam vôo depois disso, as que ficam são violentamente alvejadas pela menina que está fora de si. Outra pancada, desta vez o segundo pombo mal esboça reação; a metade do corpo está esmagada, mandando um jato de sangue pela cratera aberta ao lado da asa direita. Um golpe na vertical, outro pombo é arremessado para o meio da rua, assim como o primeiro, se contorce até ser esfacelado pela roda de um carro em alta velocidade, jorrando sangue, vísceras e penas pelos ares. Está feito. Não há um pombo sequer se deliciando das pipocas dadas de bom coração pelo homem gorducho e mal vestido que presenciou toda a cena enquanto preparava uma porção dez, vinte vezes maior da que foi desperdiçada sem a mínima certeza de que venderá um décimo da quantidade.
A garota se livra do pedaço de madeira que há pouco representava todo seu senso de justiça e mergulha no chão, no mar de pipocas, misturadas com sangue e penas de pombo,e como um banquete ela sacia sua fome. Engatinhando ela pega um, dois e leva até a boca. Pela sua expressão o gosto parece estar inacreditavelmente delicioso. Continua engatinhando, pega mais um bocado e engole de uma só vez. Arrasta-se mais um pouco afim de alcançar um grão de milho solitário que caiu afastado de todos os outros, e é quando se surpreende com o encontro de sua cabeça com as pernas de alguém. Uma velha; Cezar sabe quem essa velha é. É uma desocupada qualquer que não tem marido, perspectiva, utilidade na vida e desperdiça seu resto de tempo todas as tardes alimentando os pombos com pedaços de pão velho. Vendo a terrível cena a sua frente; pombos mortos pela calçada, milhos de pipoca, sangue, uma garota se rastejando e mais outros pombos contemplando a vista nos fios de alta tensão logo acima, a velha cai em fúria; alguns de seus filhos adotivos estão mortos, assassinados, violentamente assassinados por uma garota que não vale as migalhas de pão que cruzam os ares todos os dias para alimentar essas criaturas de Deus, abandonadas ao desdém.
A velha não pensa duas vezes; agarra a garota pelos cabelos, a suspende e berra algo diretamente em seus ouvidos. Pessoas na rua olham com curiosidade, mas sem diminuir o passo, outras riem, se assustam, passam longe e o dia continua. A garota mais uma vez começa a chorar, deixa escapar de sua pequenina mão direita alguns grãos de milho que protegia com sua vida. A velha continua berrando, cada vez mais alto, até perder completamente o controle e dar um, dois, três, quatro tapas no rosto da garota e jogando a no chão demonstrando vitalidade de uma pessoa bem mais jovem. Estendida no chão, a garota soluça, olha para os lados, deseja um salvador particular, mas no fundo sabe que essa era a pior das ilusões, a pior idiotice que um ser humano pode cometer; a espera da ação de outro. E com seus grandes olhos negros voltados ao céu azul, por um momento ela relembra todo o ocorrido, desde o início, desde a corrida inocente até o carrinho de pipocas. Durante o percurso ter se colocado na frente de um pombo fazendo-o se desviar voando para o meio da rua sendo esmagado pela enorme roda de um caminhão de mudanças, a volta feliz com as mãos transbordando pipoca, o rapaz, a madeira, a matança e a velha. Tudo isso só resultou em uma única ação; o impulso. Ela se levanta, agarra o pedaço de madeira mais uma vez e como um soldado da idade média corre em direção a velha. Alguns pedestres gritam, mas antes mesmo da velha se virar, sua perna esquerda é atingida pela madeira, ela cai de joelhos instantaneamente. Com uma terrível expressão de dor ela simplesmente encara a garota que esboça apenas ira. Vagarosamente, com as duas mãos leva a madeira atrás de sua nuca, como um jogador de baseball, e com toda sua força que no momento se multiplicou atinge o crânio da velha; mais sangue pelos ares, a velha vai ao chão, pelo orifício acima de sua orelha esquerda há um esguicho de sangue que aos poucos vai perdendo força enquanto a velha lentamente fecha os olhos para nunca mais abri-los de novo.
Após alguns minutos a polícia chega no local. Não há mais nada o que se fazer a não ser prender a mais nova assassina do bairro que está sob controle de alguns transeuntes que só tomaram alguma atitude depois de terminada a festa. A permanência da viatura não durou mais do que três minutos, fizeram apenas algumas perguntas para os dois homens que estavam segurando a garota, depois disso a enfiaram no carro e junto com um deles partiram em alta velocidade.
- O que eu faço agora Shax?
- Cezar, depois eu ter te narrado com tantos detalhes tudo que aconteceu seu cego maldito, você ainda não sabe o que fazer?
- Não, me diz aí, por favor!
-Você não faz nada meu caro. Tudo isso que aconteceu lá embaixo é tão natural quanto a nossa conversa.
- Nossa conversa não é natural!
- É claro que é. Talvez sua cegueira distorça o sentido das coisas que te cercam. Provavelmente se você pudesse me ver sentado em seu ombro agora, você me entenderia perfeitamente, porque iria ter certeza que não lhe omiti nenhum fato do ocorrido. Mas não é só por isso que você iria acreditar em mim. Você acreditaria, porque se você pudesse me ver, eu lhe teria bem mais utilidade meu caro amigo idiota.