Eterotópico
ETEROTÓPICO
Morar num casarão antigo numa pequena cidade. Aqueles de teto alto e portas bem grandesFoi sempre esse o nosso sonho. Não houve um final de ano que nós não planejássemos - " Nesse ano que entra nós haveremos de mudar" - ela dizia quando estava viva.
Dois anos já se passaram desde que eu fiquei viuvo. Gozado. Nunca imaginei ficar viuvo. Puft, assim de repente Deus decretou o fim. Do início da doença para a morte não passaram mais que quatro semanas.
Ficar na casa onde nós morávamos não seria mais possível. Eu ainda permaneci lá até encerrar as minhas atividades na capital e vender a casa. Não foi fácil. Os negócios estavam muito ruins. Mas acabei vendendo e tratei de comprar esta casa afastada do centro, na pequena cidade. A residência mais próxima da minha fica a uns quinhentos metros. Uma casa estranha aquela do meu novo vizinho. Na cidadezinha ninguém soube informar se mora alguém lá. Nunca viram pessoa alguma e alguns têm até medo de passar por perto. Outros diziam que ao voltar de uma pescaria à noite ouviram alguns gritos que não sabiam identificar bem o que era. Parecia um velho irritado, gritando com alguém. O certo é que todos evitavam passar por ali. Para mim não passava de superstição daquela gente. E afinal, era tudo que eu queria. Sossego, tranqüilidade. Quando eu quisesse conversar iria até a cidade tagarelar um pouco no armazém. Quando não estivesse para conversa, ali ninguém viria me aborrecer e eu poderia finalmente me dedicar aos meus livros . Finalmente eu estava distante do mundo. Pelo menos para mim as guerras tinham acabado.
Inflação, recessão, assaltos, crimes, violência. Esse lado do mundo havia acabado para mim. Os problemas do mundo foram proibidos de mudar junto comigo.
No fundo do casarão um belo lago natural que chegava até à casa vizinha. Fiquei longo tempo olhando para o lago imaginando como seria bom se ela estivesse comigo. Mas de qualquer forma ela devia estar contente por mim. Quando me despertei dos meus pensamentos tive a impressão que longas horas haviam se passado. As badaladas do relógio anunciando dez horas da noite me confirmaram que eu realmente ficara um bom tempo nas minhas recordações. Quem sabe se eu não tivesse cochilado um pouco. Preparei-me para dormir a primeira noite na minha nova morada. No dia seguinte teria que acordar cedo para começar a arrumar melhor o casarão e conseguir alguns empregados. Comecei a caminhar até a cama quando fui interrompido por um grito horrível, como nunca havia ouvido antes. Não dava para identificar muito o que era. Parecia uma voz rouca, daquelas de homem velho , quando se irrita com alguém. Lembrei imediatamente da descrição que o pescador havia feito. "Bobagem", falei comigo mesmo. "Acostumado com a barulheira da capital devo estar estranhando o silêncio daqui". Esperei mais alguns minutos e como nada mais escutasse, deitei-me e dormi.
No dia seguinte, mal o sol havia anunciado a sua presença, fui acordado por alguém que batia à porta. O frio era terrível e eu bem que gostaria de ficar mais um pouco na cama. Afinal eu não tinha mais hora para nada. Com muito custo fui atender ao visitante inoportuno. Abri a porta e me deparei com um homem muito distinto, vestindo um casaco grosso para se proteger do frio. Ele tirou o chapéu e me cumprimentou com muita gentileza. Eu confesso que gostei daquela forma cavalheiresca que eu já não conhecia mais.
-Desculpe se o incomodo a estas horas da manhã – falou o visitante.
- Entre. Está muito frio aí fora.
- Não se incomode. O frio não me aborrece. Mas eu lhe agradeço a deferência. Com licença.
Ele foi entrando como se conhecesse a minha casa e depositou o chapéu na chapeleira atrás da porta.
-O senhor foi muito gentil em me receber. As pessoas aqui deste lugar não são lá muito bem educadas.
- O senhor é daqui mesmo?- Perguntei, tentando saber quem era aquele homem um tanto estranho.
- Sou. Meus pais também. Meus avós, bisavós e todos os outros. Ah! Desculpe-me, meu nome é Andrada. E o senhor, como veio parar aqui?
- É uma longa história e eu ainda terei o prazer de contá-la mais tarde. Eu me chamo Augusto. Vim morar aqui sozinho em busca de tranqüilidade. O mundo lá fora está terrível e uma cidadezinha assim sempre me encantou. Parece que os problemas do mundo não chegam aqui.
- Chegam sim, senhor Augusto. E se juntam aos problemas próprios da localidade. Mas me desculpe, eu não quero aborrecê-lo. Seja bem vindo à nossa cidade e se me permite, já que estou vendo que o senhor é uma pessoa de bom nível, gostaria de convidá-lo para me visitar em casa. Eu sou um colecionador de quadros, antigo hábito da família e ficaria muito satisfeito que o senhor os conhecesse.
- Com muito prazer.
- Ah! Hoje eles me aborrecem muito. Mas há quem goste
O senhor Andrada pegou um cartão no bolso do casaco e o depositou sobre um aparador e foi saindo.
-Aqui está o meu endereço. Desculpe a pressa, mas eu preciso retornar à minha casa. Eles me esperam. Posso aguardá-lo hoje à noite?
- Está combinado. Oito da noite está bem?
-Ótimo. Teremos tempo para conversar. Espero que o senhor não se aborreça de flar sobre quadros. Com o povo daqui eu não posso falar. Até logo senhor Augusto.
- Até logo senhor Andrada.
Ele tinha alguma coisa de diferente. Um homem fino, mas estranho. Peguei o cartão que ele havia deixado com o endereço e a rua era a mesma que a minha. Mas na minha rua só havia a minha casa e aquela que causava medo aos habitantes da pequena cidade. Ainda corri até a rua para ver para onde ia o senhor Andrada . Ainda o vi entrando na velha casa. Eu respirei aliviado : "Não disse que essa gente é supersticiosa. Tem até gente morando no velho casarão".
À noite, na hora marcada eu lá estava em frente ao casarão. Se o senhor Andrada consentisse, numa outra oportunidade eu convidaria algumas pessoas da cidade para virem comigo e assim acabar com o temor que aquela gente tinha pela casa. Fui logo interrompido pela voz rouca do senhor Andrada:
- Fico contente que o senhor tenha vindo. As pessoas nunca me visitam. Entre quero que o senhor conheça meus quadros.
- Essa é uma visita que me agrada muito. Eu sempre fui um admirador da arte, como o senhor.
- Eu era.
Ele falou com um pouco de rancor e sua voz me lembrou o grito que eu havia escutado na noite anterior. Entramos na casa e sem nenhuma outra formalidade, o senhor Andrada passou a me mostrar suas obras.
Notava-se uma certa irritação.
- Veja que belo quadro senhor Augusto. Luís XIV. França. Quantas outras personalidades do passado a França poderia ter colocado nesta moldura? Dezenas? Centenas? E hoje, o senhor conhece algum francês que poderia ter a honra de estar emoldurado ali?
Fiz um esforço para me lembrar rapidamente de alguém, mas o meu anfitrião se adiantou:
- Não perca seu tempo. Não vai encontrar mais ninguém.
- Devo admitir que o senhor tem razão, senhor Andrada.
- Olhe aquele outro quadro.
- Shakespeare, o senhor tem mesmo bom gosto.
O senhor Andrada acrescentou ainda mais irritado:
- Agora senhor Augusto, me faça o favor de procurar em todo o Reino Unido, um único inglês que, nos dias de hoje, possa ter a honra de ocupar o lugar de William.
- Não me lembro de nenhum, assim rapidamente – respondi.
Cada vez ele ficava mais irritado:
- Não é que o senhor não se lembra. O problema é que não tem.
Passamos para uma outra sala repleta de quadros. Um deles me chamou a atenção. Era o lago que ficava ao fundo da nossa rua. Mas o trabalho parecia estar inacabado. Faltava alguma coisa.
- Não me critique ainda senhor Augusto. O que falta nesse quadro será completado ainda hoje.
- Desculpe-me, mas essa paisagem parece que já foi pintada há muito tempo e ela me parece inacabada. O senhor não poderá completá-la – falei meio sem jeito.
O meu anfitrião me pegou pelo braço e me conduziu rumo ao fundo da casa:
- Chegamos ao Brasil. Veja, ali José Bonifácio de Andrada e Silva. Do outro lado, Rui Barbosa. Feche os olhos, Senhor Augusto, e apague a imagem dos dois. Procure em todo o território Nacional, e olha que não é pequeno, quem hoje em dia poderia estar nessas molduras sem diminuir-lhes o valor.
Eu procurei por alguns instantes no meu registro mental, mas a voz rouca e irritada logo me trouxe de volta ao casarão:
- Não se canse meu caro vizinho. Não vai encontrar ninguém.
Logo em seguida ele me conduziu até uma porta que dava para a varanda. A lua cheia iluminava o lago e a montanha. Era uma paisagem linda. Tudo muito parecido ao quadro inacabado que havia me intrigado tanto.
- Não é lindo senhor Augusto? Sempre foi assim. Não muda, mas os homens já não são os mesmos. Não há mais modelos para nossos quadros.
Ele começou a descer em direção ao lago. Eu fiquei olhando e quando ele já estava a uma certa distância da casa eu gritei:
- Senhor Andrada. Volte.
- Não – respondeu à distância - aqui é muito bonito. Eu não quero sair dessa paisagem. Fique o senhor aí.
Eu ainda o vi se afundando no lago e corri na direção da saída da casa, à procura de ajuda. Ao passar pelo quadro inacabado levei o maior susto da minha vida. Ele estava completo. Na parte inacabada, agora havia a imagem do senhor Andrada.