Carta-Conto ou Conto-Carta

De algum canto esquecido da América latina, São Paulo, 12 ou 13 de julho de 2009.

A Alguém.

As coisas por aqui melhoram gradativamente. Não tenho pressa de ver tudo bem; a espera dá um sabor extra a essa grande jornada, muitas vezes errante, que é viver. Não tenho pressa, pois tudo já caminha em velocidade nauseante ao fim. E o fim não é, necessariamente, tragicamente triste (tampouco felicíssimo).

A pressa foi o que fez deste mundo o que ele é hoje. Eu cheguei a essa conclusão depois que me desfiz dela. A pressa é a culpada de eu ver meninas da idade da minha irmã nas esquinas, pois elas têm pressa de crescer e ser donas de seus próprios corpos; e a maneira que elas encontram de ser donas de seus próprios corpos é vendê-los. É só um exemplo de como a pressa torna este mundo tão impreciso.

Tomando ainda o exemplo das meninas que poderiam ser minha irmã, ou ainda, que são minhas irmãs, sujas, prostituídas e iludidas, a pressa também é culpada por eu não vê-las e ajudá-las. A pressa me faz ignorá-las.

Por isso, cara, por isso eu desisti da pressa. Por isso eu ando por aí sem relógio e com cara de despreocupado. E, por incrível que pareça, depois que abandonei a pressa eu nunca mais me atrasei para os meus compromissos, para os poucos que ainda tenho. Redescobri o céu acima de mim e, desfeito da pressa, ainda que poluído, ele, o céu, me parece realmente azul. Depois que abandonei a pressa, percebi a existência de tantas irmãs sujas e prostituídas que possuo.

A verdade é que a pressa me encheu o saco, todo mundo fica de saco cheio uma hora, seja lá o que for essa expressão “de saco cheio”. Então, de saco cheio, dei um pé no meu patrão, pus o pé na rua e pronto. Deixei o saco cheio de lado e enchi a mochila com coisas que realmente importam. Uma bermuda, uma calça, uma regata, um moletom, roupas pra qualquer tempo e qualquer lugar, muita folha em branco, a caneta preta, que é minha, sempre foi e sempre vai ser, ainda que acabe a tinta, porque nunca acaba, eu sempre perco antes e descolo outra igual e nem lembro que tinha perdido a primeira, aquele retrato, uns livros que eu reciclo em qualquer sebo perdido, mas dois eu conservo comigo, um porque é o que me alimenta todos os dias, o outro era o nosso preferido, lembra? Não sei porque eu disse “nosso” e “lembra?”, já que eu nem tenho mais o seu endereço e provavelmente vou colocar essa carta na mochila, junto com tantas outras, de letra um tanto tremida, efeito da cafeína e da insônia, do blues alto dos bares. E, mesmo que eu te mandasse, esta seria só mais uma carta que você guardaria junto com as outras, que eu acho que você nem abriu, porque eu duvido que você tenha tido paciência para ler... É o efeito da pressa também. Um e-mail seria tão mais rápido, prático, barato, legível, breve... A pressa fez as pessoas pararem de ver a beleza nas coisas mais simples, os detalhes, por exemplo, a mancha de café na folha da carta, um tanto amassada, a grafia grifando inconsciente o que acha ser importante, isso inexiste nos e-mails, impressos, telegramas, ou o que for... Mas eu abandonei a pressa de viver e de morrer e aprendo a cada dia com as minhas irmãs imundas...

Mesmo sabendo que talvez essa carta não chegue em suas mãos, seja lá quem for você, porque eu já nem lembro pra quem estou escrevendo, efeito da cafeína, da ressaca, dos resquícios de estresse de que eu ainda não me livrei, resolvi escrever, afinal, nunca te mandei notícias desde o dia em que resolvi partir daí, desistir da pressa, dizer “amém” à sua prece, e andei tanto, e rodei de ônibus, metrô, trem, montanha russa, teleférico, até chegar a este lugar chamado conclusão e essa é a conclusão, todos os caminhos levam a uma conclusão e a minha conclusão, como você percebeu, é que a pressa não interessa, não edifica, tampouco dignifica alguém... Te mandaria algumas fotos dos lugares onde estive, mas provavelmente você já conhece todos eles e eu perdi os negativos, mandei embora, troquei num sebo por um livro novo, não sei bem o que fiz. Continuo magro, agora talvez mais do que antes, efeito da comida de plástico que a gente aprende a comer, lanche natural, misto, pizza quando a grana dá, mas tudo sem carne, você me conhece, não sei o que dizer de mim, mudei tanto que às vezes me esqueço que nem sempre fui assim, livre, sem medos, descarado, a pressa nos prende a tantas coisas banais e hoje eu já não me prendo a coisas banais, ou só me prendo a elas e já nem sei discernir o que é banal e o que é essencial, eu só percebo a nitidez das coisas e quanto mais nítido mais eu desejo, efeito de andar por tantos lugares, dormir tão poucas horas, sem nem saber se é sonho ou se é real.

E é isso, querida, daqui desse canto eu te escrevo, enquanto peço um conhaque, gelo, sem cacau, pra segurar a brisa, sabe como é, esses dias bem frios são assim, mas eu não me embriago mais, embriaguez é coisa de quem bebe com pressa e eu não me apresso a desaparecer, ou a entrar em alfa, pois uma das maiores coisas que aprendi com uma das minhas irmãs, umas das mais sujas e iludidas, é que tudo o que tem de acontecer, acontece e todas as coisas boas que a gente pede a gente recebe se a gente crer, eu li isso num dos livros que conservo comigo, um de capa brochura azul e letras prateadas, muito imponente e sábio. Peço também pra rodar na jukebox, na mesa do DJ, no rádio-vitrola, seja lá o que for, aquela música que eu suspeito que um dia foi nossa, ao menos eu a considerava assim; eu ouço sem pressa, bebo sem pressa, peço uma porção de batatas fritas, conto os trocados pra pagar por tudo o que consumo, a garçonete vai me olhar impaciente e eu, sem pressa, vou contar moeda a moeda, até que ela se irrite, pegue tudo da minha mão e saia no prejuízo, ou leve um lucro em cima da minha pressa, eu nunca sei, mas sempre surge um capital na minha mão, não sei de onde, o que importa afinal, eu estou cumprindo com o que o livro-sábio-e-imponente diz e tudo está dando certo pra mim.

Um dia eu volto, você sabe que eu volto, mas não tenho pressa de voltar. Ainda há muitas paisagens, fotografias, garçonetes, irmãs abandonadas, imundas, prostituídas e iludidas a conhecer. E quando eu voltar, por favor, não tenha pressa em me buscar na estação, ou arrumar um canto pra eu dormir, afinal, a pressa não vai ajudar em nada, eu estou tranqüilo, me arranjo em qualquer lugar; não se espante com minha barba por fazer, ou meu cabelo sem corte, mas não se espante com essas palavras, não virei um mendigo, ou um andarilho, sou só um mochileiro, se você quiser chamar assim, que não tem pressa alguma de ir, ou de voltar, ou de tomar uma decisão, nunca tive pressa de tomar uma decisão, você lembra, não é? Enfim, amiga, mãe, meu velho, brother, eu preciso parar de escrever, minha vista não ajuda mais, efeito da insônia e da mania de rabiscar palavras ininteligíveis nos interiores escuros desses bares, “jazz-coffes” nos quais eu me enfio sem pressa de sair... Manda um abraço pro pessoal da rua, pra tia Núbia, pra sua irmã, que ela me faz falta, diz que eu li o livro que ela me mandou ler e manda ela ler sem pressa, porque vai fazer muito mais sentido assim. E, se eu posso te fazer um apelo, larga essa pressa e essa preocupação, espairece, esquece o chefe uns tempos, sai pra andar sem pressa, aprecia a paisagem e vai até a estação pra ver se eu já cheguei, ok? Te amo e sempre te amei e sempre vou te amar, porque você é parte de mim e das minhas irmãs imundas, prostituídas e desiludidas que precisam, também, muito de você... Eu continuo escrevendo, sem pressa de acabar, mas com um certo desespero, porque eu não quero terminar essa carta do nada. Tentei encerrar com um “te amo”, mas não consegui, acho, então, que é melhor dizer até breve, pois é isso o que minha consciência me diz pra fazer então...

Até breve.

William G. Sampaio [13/7/09 23h26]

William G Gardel
Enviado por William G Gardel em 13/07/2009
Reeditado em 06/09/2012
Código do texto: T1698125
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