Longevidade

Se dissessem que a vida passou rápido para D. Laura, seria um equívoco, tanto quanto afirmar que cada dia foi bem aproveitado. Claro que, em alguma medida, ninguém poderia olhar para a própria vida e atestar com literalidade que os dias foram, sem exceção, vividos intensamente. Não é dessa maneira que me refiro à D. Laura. Se houvesse uma média por vida humana de dias bem aproveitados, ela estaria abaixo com ampla folga. Pronto, fiquemos assim. Dizem que não havia um só amigo em seu velório, embora tivesse feito alguns, mas quis a Providência que fosse ela a última a morrer. Daí a carência de amigos. Esta história, contudo, é sobre seus derradeiros anos, e não sobre seu último suspiro.

Em seu aniversário de sessenta anos, D. Laura não esperava que chegasse à próxima mudança da casa decimal. Ao completar setenta, pediu pela primeira vez que Deus a levasse. Tal foi a súplica que repetiu dali em diante em todas as suas três orações diárias.

Certo dia, quando tinha oitenta e dois, pôs-se a testar a própria memória e lembrar-se de seus pecados. Desconheço o motivo, pois não era nenhuma data especial. Talvez fosse a esperança de que enfileirando suas faltas e juntando-as no mesmo lugar da cabeça, pudesse criar um peso muito grande no fio de sua história ao ponto de tirar-lhe o equilíbrio e o pulso.

Pularei os primeiros pecadinhos, que são coisa pouca e não convém perder tempo com eles.

O primeiro mais grave de que se lembrou foi a intriga que criara na adolescência para separar uma amiga do namorado. Inventou que ele tinha já uma esposa em outra cidade, onde havia bacharelado em Direito. Espalhou até o nome de um suposto filho que teria nascido dias antes dele voltar para a casa dos pais. Deixou que o boato corresse por todos os ouvidos até chegar ao da amiga, que rompeu o relacionamento sem dar tempo ao pobre rapaz de explicar-se.

Passou por mais algumas faltinhas bestas até se recordar da ocasião em que jogara contra a parede uma bailarina de porcelana da irmã, por vingança de uma discussão. Remontou a cena como se tivesse ocorrido no dia anterior. Terminava com uma sentença:

- A vida há de ser cruel com você, dizia a irmã. E paf, lá foi a bailarina para seu pas des deux com o concreto.

Depois disso, as recordações começaram a vir mais rapidamente. As cenas nem terminavam mais. Lembrava-se de tudo ao mesmo tempo, desordenadamente. Juntava o começo de um pecado com o desfecho de outro. Por fim, adormeceu.

Façamos agora uma incursão breve no mundo dos sonhos. Ato um, cena um. D. Laura anda por uma rua desconhecida, sozinha. É atropelada por um ônibus. (Não pense que retirei os detalhes; estamos narrando apenas o que ela lembraria ao acordar.) Ato um, cena dois. Um barco em alto mar, com todos se divertindo, exceto nossa protagonista, que lamenta em silêncio no convés. Uma onda mais forte os atinge e ela cai no mar para morrer afogada. Ato um, cena três. D. Laura morre novamente, mas não lembra como. Ato um, cena quatro. A sopa borbulha no fogão. Da janela, um vento que balança a cortina até o fogo, e D. Laura morre queimada.

D. Laura acordou lamentando estar viva. Não era um lamento completo, posto que ninguém queira cem por cento a própria morte. Uma ínfima parte, portanto, não era pesar; sentiu também medo.

Disposta a desculpar-se com seu Criador, triplicou a quantidade de rezas e dispôs-se a recordar um pecado por dia. E assim fez por muitos anos. Não distinguia os pecados pelo tamanho; isso faço eu. D. Laura acreditava que todos eram iguais aos Seus Olhos. Diariamente, lembrava-se de uma falta cometida e desculpava-se.

Como nada mudasse em sua vida e Ele não a levasse, começava a impacientar-se, até que foi brindada com outro sonho. Um homem de chapéu, por volta dos quarenta anos, dizia-lhe: “faça o bem”. Só isso, e acordou. Tinha já seus noventa e cinco anos. Veio à memória a bailarina quebrada. (Repetia uns pecados de vez em quando, por não se lembrar de algum inédito.)

O sonho com o homem de chapéu repetiu-se com freqüência dali em diante. D. Laura entendia o conselho, mas agia como se não visse oportunidade, no dia a dia, para fazer o bem. Ademais, que bem poderia fazer com tanta idade? Não encontrava, sem suas recordações, uma só coisa valiosa que pudesse ofertar a alguém.

D. Laura morreu aos noventa e nove anos. Um dia antes, recebeu a visita do neto:

- Que maravilha, minha vó! Noventa e nove anos! Quisera eu ter uma vida tão longa pela frente para aproveitar.

Ela ouvia isso com muita frequência, mas o que lhe chamou a atenção foi o verbo, aproveitar. Como poderia ter aproveitado seus anos, reunido os netos para contar as boas histórias de sua vida. É certo que não as tinha em grande quantidade, mas quem sabe inventasse algumas. Ou mesmo antes de reunir os netos, poderia ter vivido boas histórias. Mas não as viveu. D. Laura então pensou que a longevidade, para ela, era nada mais que punição.