Bicicleta Preta
Ao cair do dia, numa estrada estreita e empoeirada, Jürgen some no horizonte empurrando a bicicleta preta que tanto lhe custara reaver. Ao fundo, um violino sublinha o céu laranja e ressalta as silhuetas de Jürgen e sua bicicleta enquanto aparecem, de baixo para cima, as primeiras letras dos créditos. As pessoas que lotam a sala de projeção põem-se de pé e aplaudem por longos minutos.
Dada as circunstâncias do convite, P. não vira outra saída a não ser confirmar sua presença; sua intenção inicial era chegar na cidade, assinar o contrato de exibição de seu novo filme e partir. N. relutara em ir, mas não resistira à dor de ver uma obra do ex-amigo. Ambos velhos e cansados, voltavam àquela cidade e sentiam antigas feridas sendo reabertas enquanto percorriam as mal iluminadas ruas da adolescência; passavam em frente ao antigo colégio dos padres; sentiam o revigorante odor de álcool dos bares e do perfume barato das prostitutas nas esquinas.
N. nascera e vivera até os trinta anos em Caxias do Sul. Estudara no colégio dos padres e, após graduar-se em Administração e casar-se com a professora de Introdução à Econometria, mudou-se para uma pequena cidade na encosta do Rio das Antas, onde abriu seu próprio negócio, criou quatro filhas e resignou-se.
Aos treze anos, levado por sua mãe solteira, P. nunca se acostumara às rezas, horários, disciplina e punições do colégio dos padres. Desde seu ingresso até à conclusão do segundo grau, sentira-se alheio a toda aquela parafernália. O primeiro beijo dera aos dezoito anos, após juntar algumas notas amassadas. Só possuiria uma mulher no primeiro e único semestre de graduação em Administração. Após a decepção acadêmica e amorosa, aos vinte anos, fora estudar cinema na Europa e não pisara novamente o solo caxiense, até então.
Ao chegar em casa do escritório, N. encontrou sobre a mesa o informativo mensal do Cineclube Casablanca, do qual era sócio inativo há quinze anos. Ao lado deste havia um bilhete de sua filha caçula escrito com delicada letra redonda: “Não é o nome daquele seu conhecido? A pré-estréia é hoje”. N. abriu o informativo temerosamente e pousou os olhos no título Schwarz Fahrrad, que havia sido sublinhado; ao lado, o nome de P. Largando o papel, N. escorou-se com ambas as mãos no tampo de mármore da mesa e olhou fixamente para o título do filme. Num movimento brusco, pegou uma caneta do bolso interno do paletó e escreveu “Volto tarde” no verso do bilhete.
A imprensa local anunciou com estardalhaço a chegada de P. à cidade. A seção cultural do jornal de maior circulação continha a seguinte manchete: “Do mundo para Caxias”. Completava a reportagem uma floreada biografia de P., com excessiva ênfase ao período em que o cineasta morou na cidade, seguido pela extensa lista de sua filmografia. Desde que se instalou num hotel da Sinimbu, o telefone de seu quarto não parou de tocar. Jornalistas, fãs, conhecidos e desconhecidos com insistência pediam entrevistas, exigiam autógrafos, ofereciam contratos ou simplesmente desejavam ouvir a voz do célebre senhor. “Não quero mais ser importunado”, ordenou P. à recepção após atender ao décimo terceiro chamado.
A última vez que N. dirigira por aquela estrada sua filha caçula delirava de febre deitada no colo da mãe no banco de trás do carro. T., aterrorizada, segurava-a pela cabeça e sussurrava palavras amorosas enquanto beijava sua testa. Isso foi há seis anos, pensou N. Contudo, ainda lhe eram familiares as sinuosas curvas, a imponência da ponte, o rio que corria macio. Daquela vez, e em algumas outras, a imagem da cidade de Caxias crescendo ao serem vencidas as últimas curvas representava um alívio para N.
“Serviço de quarto”, foi o que anunciou a mulher depois de bater timidamente na porta. Incrédulo, P. abriu-a e encontrou uma loira esguia de olhos claros que não encaravam os seus, escondidos atrás dos óculos.
- Senhor P.... Posso chamá-lo assim? Desculpe-me o atrevimento, mas tenho a estranha sensação de que conheço o senhor há muito tempo, já assisti a todos os seus filmes e...
- O que a senhorita deseja?
- Me chamo V., sou vice-presidente do Cineclube Casablanca, e nos sentiríamos honrados se pudéssemos contar com a presença do senhor na pré-estréia de hoje.
- Isso está completamente fora de cogitação. As minhas intenções nessa cidade são outras. Além do mais, nunca ouvi falar de serviço de quarto que oferecesse pré-estréia de seja lá qual filme for. Passar bem!
A porta sendo fechada mostrou a V. que era necessário utilizar-se de argumentos mais contundentes. Indo contra sua personalidade tímida e subserviente, colocou o pé direito entre a porta e o umbral e disse:
- Minha mãe me encorajou a vir pois diz conhecê-lo e acreditava que o senhor não seria capaz de negar um convite como esse. Creio que ela estava enganada, o tempo e as cidades, afinal, mudam sim as pessoas. – N. ficou espantado com o que escutou e era-lhe difícil acreditar que uma jovem tão delicada pudesse colocar tanta energia no ato e na voz. Pareceu a N., inclusive, ter sentido uma ponta de rancor no tom de voz de V. Tornou a abrir a porta.
- Quem é a sua mãe?
- Ela se chama T. Pelo que ela me contou, vocês se conheceram na universidade, aqui em Caxias.
- Por favor, entre.
Era muito peculiar em Caxias o barulho que os pneus dos carros produziam ao sair de uma rua asfaltada e entrar numa calçada com paralelepípedos. N. acelerou para tornar o barulho mais alto e descobrir se sentiria a mesma excitação que costumava sentir na sua adolescência. Não sentiu e achou-se velho. Dobrou a esquerda saindo da Moreira para entrar na Sinimbu e subiu até à praça. Estacionou na frente da catedral e, ao desembarcar do carro, reparou no alvoroço que havia na frente da Casa da Cultura. Na fila do guichê se sentiu deslocado, pois a maioria dos presentes parecia não passar de vinte e cinco anos. Todos alegres, barulhentos, cheios de vida. N. comprou seu ingresso e pediu a um amigo de sua filha mais velha (também ela membro do cineclube), se poderia entrar, mesmo faltando vinte minutos para o início da sessão. A sala de projeção estava vazia e com as luzes acesas. N. acomodou-se no centro da última fileira de poltronas. Dez minutos depois, um senhor entrou pela porta de emergência, situada ao lado da enorme tela branca, e sentou-se na primeira fila.
P. e V. conversaram por trinta minutos. No final da conversa, P. descobriu a origem do rancor (agora confirmado) de V., e V. concordou com as razões de P. para haver mudado tanto. Saíram do hotel juntos e foram para a Casa da Cultura. Atendendo ao pedido de P. para não ser visto e incomodado V. estacionou na garagem interna do prédio e o fez entrar na sala de projeção pela porta de emergência. Faltavam dez minutos para o início da pré-estréia e V. precisava ajudar na organização. Saiu após prometer a P. que voltaria logo que as luzes se apagassem.
Não demorou para que as pessoas começassem a entrar e tomar seus lugares. O número de poltronas era inferior ao de ingressos vendidos e isso causou grande balbúrdia de números e letras sendo gritados, pessoas levantando e sentando. Alguns, percebendo que não obteriam seus lugares, começaram a acomodar-se no chão, ao longo dos corredores. P. e N. assistiram a tudo com curiosidade e um pouco de mal-estar. Ambos, por razões diversas, não queriam ser notados ou reconhecidos e, por isso, tentavam se mexer e falar o mínimo possível. O diálogo mais longo que P. travou se deu com um jovem de cabelos longos negros e calças jeans rasgadas que tentou sentar-se na poltrona reservada para V. Contudo, acabou cedendo-a para uma simpática mulher, grávida de sete meses.
A projeção iniciou antes de as luzes serem apagadas e ainda com muita conversa do público. A escuridão coincidiu com a primeira fala de Jürgen sobre o roubo de sua bicicleta preta e o toque quente da mão de V. no ombro de P. Este tentou explicar por gestos que havia cedido a poltrona para a mulher grávida, mas V. interrompeu-o com um sinal e apontou para o chão onde se sentaria, logo a sua frente.
O personagem de Jürgen e algumas outras situações retratadas no filme fizeram N. recordar-se de si mesmo quando adolescente e de episódios vividos naquela época em que tinha a amizade de P. A cena da prostitua oferecendo uísque com perfume a Jürgen era referência explícita à noite em que P. dera seu primeiro beijo. N. riu da lembrança.
As risadas e suspiros do público nas horas certas aliviaram a tensão de P., levando-o a pensar que, afinal, as diferenças culturais entre os dois países não eram tão grandes quanto o faziam acreditar. A presença de V. aos seus pés, como que o protegendo, também serviu para relaxá-lo e fazer com que até sentisse orgulho de sua obra.
Jürgen empurrando sua bicicleta preta numa estrada estreita e empoeirada anunciou que era hora de P. retirar-se antes que as luzes voltassem a serem acesas. P. inclinou o corpo para frente com o braço estendido e não encontrou as costas de V. Com o início dos créditos, o público colocou-se de pé e começou a aplaudir. O coração de P. acelerou, olhou para os lados à procura de V. e como não a encontrava colocou-se de pé e tentou alcançar a porta de emergência, mas havia muitas pessoas a sua frente e agora a escuridão era quase total. Assim, sentou-se novamente, apreensivo.
N. levantou-se com o público, porém não sabia se aplaudia como os outros. Sentia uma mistura de traição e saudosismo que o fez ficar com as mãos nos bolsos e o olhar perdido. Só recobrou a atenção quando as luzes foram acesas e pôde ver sua filha atropelando as pessoas paradas no corredor. Após muito empurrar, pedir licença e desculpas, viu-a inclinar-se na frente do senhor que havia entrado dez minutos depois que ele, pegá-lo pela mão e levá-lo na direção da porta de emergência. Pareceu a N. que o senhor agarrava-se a ela com tanta devoção que sentiu ciúmes.
A presença calma de V. restituiu a paz em P. e este até ensaiou mentalmente algumas perguntas sobre o que ela achara de seu filme e talvez as faria quando se achassem longe dali. Num último olhar para a sala com o intuito de checar se tudo corria bem, V. petrificou com a mão na maçaneta da porta. Sem compreender o comportamento inesperado de V., P. virou-se na direção do olhar da moça e viu que o senhor da última fila também os olhava.