Resgate - com Bernard Gontier
Profundo é o poço do passado. Tento atingí-lo para resgatar a memória. Compreender porque sou como sou, porque assim tudo é. Mas as águas do poço profundo são turvas. Só o que percebo são sombras que assombram. A luz se esbarra na cortina de águas turvas que não me deixa lembrar ou esquecer. Fico sentada na beira do poço sem condições de caminhar, parada sem saber qual o tempo de viver, o de esperar, o de lembrar e o de sonhar. O presente se constrói passo a passo, mas à medida que os passos se adiantam os sonhos mudam. Onde começaram a mudar?Preciso saber para encontrar o caminho do norte. Preciso encontrar as pistas que me trouxeram até aqui para preparar a escalada em busca do sol. Sem forças, estou presa ao passado que fez de mim o que sou. Um passado mais fundo que o poço sem fundo em que quase me afogo. Tão fundo que a luz da esperança não consegue atingir. Não posso ignorá-lo - seria ignorar a mim mesma. Nem posso mirá-lo como se mira em um espelho: não me veria apesar de estar lá. Tão longe que os olhos não alcançam para compreender. Venho de muitas eras, de raças extintas, de nomes perdidos, de feitos desfeitos. Venho e sei que vim, mas não sei por que. E isso tolhe os meus passos que se amarram em grilhões sem forças para continuar. O presente se constrói passo a passo. Sim eu disse isso. Vivi isso. Houve tempo em que pensei que havia nascido assim. Com um desatino tal, que iria me arrepender até o fim dos dias, cada vez que olhasse para o poço. Bem, agora estou defronte dele. Dizem que uma das maneiras de se livrar do passado é voltar para lá, nem que seja por instantes. Quando eu tinha 9 anos a diretora do colégio chamou minha mãe e disse: “aqui está o diploma da menina. Leve-a daqui, não volte mais”. É o diploma que tenho, o do primário. Quando meu pai partiu minha mãe revelou sua fraqueza – a de não conseguir conviver consigo mesma. Com 11 ganhei um padrasto que gostava de me banhar. O último banho que me deu serviu para arranjar-lhe uma faca nas costas. Minha mãe não me perdoou. Fugi. Com 15 eu ganhava a vida nas esquinas. Antes dos 18 fui vendida para um estrangeiro. Eu era uma bela mulher, delgada, quente, aprendia depressa, mais depressa do que eu supunha. Um dia ele disse: não quero uma tola, para gerar filhos tolos. Fugi outra vez. Gostava mais de álcool que de rapazes sujos com roupas apertadas. Gostava mais de cocaína que de sexo. O último rapaz, careca, barrigudo e exalando perfume barato, me levou para a metrópole. Disse que ganharíamos muito dinheiro, se eu dirigisse o carro. Burro, conhecia minhas fraquezas e minhas habilidades. Não soube explorá-las. Outros ficaram com todo dinheiro do roubo e ainda executaram-no na minha frente. Disseram que eu era a mentora do crime. Passei os últimos 15 anos na cadeia onde aprendi a ler e escrever corretamente. Ontem recebi esse tema para redigir. Escreveria qualquer coisa para sair daqui. Para mim, o poço do passado é esse espelho, que mostra meu rosto deformado, meu ar cansado das águas turvas que resumem minha vida e das quais não posso livrar-me. Mas quando eu escrevo, melhora. Sinto-me outra pessoa.
(texto escrito por Maria Olímpia Alves de Melo e Bernard Gontier Neto)
Profundo é o poço do passado. Tento atingí-lo para resgatar a memória. Compreender porque sou como sou, porque assim tudo é. Mas as águas do poço profundo são turvas. Só o que percebo são sombras que assombram. A luz se esbarra na cortina de águas turvas que não me deixa lembrar ou esquecer. Fico sentada na beira do poço sem condições de caminhar, parada sem saber qual o tempo de viver, o de esperar, o de lembrar e o de sonhar. O presente se constrói passo a passo, mas à medida que os passos se adiantam os sonhos mudam. Onde começaram a mudar?Preciso saber para encontrar o caminho do norte. Preciso encontrar as pistas que me trouxeram até aqui para preparar a escalada em busca do sol. Sem forças, estou presa ao passado que fez de mim o que sou. Um passado mais fundo que o poço sem fundo em que quase me afogo. Tão fundo que a luz da esperança não consegue atingir. Não posso ignorá-lo - seria ignorar a mim mesma. Nem posso mirá-lo como se mira em um espelho: não me veria apesar de estar lá. Tão longe que os olhos não alcançam para compreender. Venho de muitas eras, de raças extintas, de nomes perdidos, de feitos desfeitos. Venho e sei que vim, mas não sei por que. E isso tolhe os meus passos que se amarram em grilhões sem forças para continuar. O presente se constrói passo a passo. Sim eu disse isso. Vivi isso. Houve tempo em que pensei que havia nascido assim. Com um desatino tal, que iria me arrepender até o fim dos dias, cada vez que olhasse para o poço. Bem, agora estou defronte dele. Dizem que uma das maneiras de se livrar do passado é voltar para lá, nem que seja por instantes. Quando eu tinha 9 anos a diretora do colégio chamou minha mãe e disse: “aqui está o diploma da menina. Leve-a daqui, não volte mais”. É o diploma que tenho, o do primário. Quando meu pai partiu minha mãe revelou sua fraqueza – a de não conseguir conviver consigo mesma. Com 11 ganhei um padrasto que gostava de me banhar. O último banho que me deu serviu para arranjar-lhe uma faca nas costas. Minha mãe não me perdoou. Fugi. Com 15 eu ganhava a vida nas esquinas. Antes dos 18 fui vendida para um estrangeiro. Eu era uma bela mulher, delgada, quente, aprendia depressa, mais depressa do que eu supunha. Um dia ele disse: não quero uma tola, para gerar filhos tolos. Fugi outra vez. Gostava mais de álcool que de rapazes sujos com roupas apertadas. Gostava mais de cocaína que de sexo. O último rapaz, careca, barrigudo e exalando perfume barato, me levou para a metrópole. Disse que ganharíamos muito dinheiro, se eu dirigisse o carro. Burro, conhecia minhas fraquezas e minhas habilidades. Não soube explorá-las. Outros ficaram com todo dinheiro do roubo e ainda executaram-no na minha frente. Disseram que eu era a mentora do crime. Passei os últimos 15 anos na cadeia onde aprendi a ler e escrever corretamente. Ontem recebi esse tema para redigir. Escreveria qualquer coisa para sair daqui. Para mim, o poço do passado é esse espelho, que mostra meu rosto deformado, meu ar cansado das águas turvas que resumem minha vida e das quais não posso livrar-me. Mas quando eu escrevo, melhora. Sinto-me outra pessoa.
(texto escrito por Maria Olímpia Alves de Melo e Bernard Gontier Neto)