Correndo

Sempre correndo.

A mesma felicidade que Deus sentiu assistindo Jesus Cristo ser crucificado era sentida junto a meus passos largos em meio a toda colina que percorria até chegar a minha casa. Nada era igual, todos os dias conseguia enxergar algo novo, belo, me fazendo acreditar ser a pessoa mais sortuda deste mundo. O prado verde com seu típico cheiro, que se juntava ao da terra molhada, sendo capaz de fazer qualquer pessoa desistir de tudo por algum tempo, se instalava em meu inexperiente olfato. Onde em certas partes atingia a altura de meus joelhos, já em outras nem era mais sentido sob meus pés calejados de tanto correr e pular em círculos sem nenhum motivo, sem a mínima preocupação com o tempo, que se arrastava ao meu redor com muito mais pressa que meu caminhar desajeitado, desviando-se de roseiras e outras plantas que mal sabia distingui-las, mas que seus espinhos eram vistos de longe me dando até certo desconforto em me aproximar. Sem o mínimo receio de pensar sobre o que o futuro me reservava. Apenas vivendo este infinito momento, ao lado de árvores enormes de muitas espécies que cercavam toda a terra pertencente a minha mãe. Muitos animais, que junto comigo conheciam cada minúsculo pedaço do silêncio sentido até onde o ponto mais sensível do tato poderia alcançar. Animais que sempre partiam. Só não sei para onde. A linda cachoeira que era o lugar que mais adorava ir, principalmente nos dias de outono quando o céu está perfeitamente azul e minha visão se perdia no profundo da única cor ilusória apreciada durante todo o dia. A exagerada plantação de milho que se estendia por todo o terreno abaixo da colina, que já poderia dizer que era minha propriedade. Uma casa velha quase junto ao milharal. Sempre trancada, jamais consegui entrar e ver o que havia por lá. Certo dia minha mãe dissera que nela vivia um homem que foi preso por matar uma pessoa importante aqui na região. E isso é tudo que ela se limitou a dizer, e é tudo que sei até hoje. Em verdade, não sei muito sobre o que se passa por aí. Mas tudo bem, eu não preciso saber. A única coisa que necessito saber, posso dizer que já nasci sabendo e nada mais quero, e muito menos a preocupação inútil com um assassino que com certeza mereceu todo o castigo que lhe foi imposto.

Nunca gostei de pensar neste assunto; a maldade alheia. Minha mãe sempre dizia que nem deveria perder meu tempo com isso, mas sempre foi uma questão que me martelou, e sei que no fundo ela estava certa e se tivesse seguido seu conselho, não precisaria estar te contando toda essa história e sim estaria fazendo o que sempre fiz de melhor; correr.

Mas agora há pouco tudo mudou. Estranha mudança. Acho que nunca me adaptarei a isso. Minha tão apreciada solidão foi interrompida. Do alto da colina vi um ponto minúsculo se aproximando do meu maior motivo de curiosidade. Pensei comigo que precisava ir até lá e ver o que se passava. Péssima escolha! Deveria ter ficado exatamente onde estava e pela primeira vez em minha vida deveria desejar ter nascido paraplégico. Mas não, desci toda a maldita colina correndo o mais rápido que podia e quanto mais me aproximava, mais o minúsculo ponto ia tomando a forma de um homem com uma roupa toda negra, cabelos grisalhos e um andar extremamente calmo. Não foi possível ver seu rosto, no entanto tive a certeza de que ele não estava sorrindo, muito menos chorando. E por mais que tivesse corrido o mais rápido possível, não consegui alcançá-lo e assim ele entrou na casa. Parei por alguns instantes do lado de fora apenas para recuperar o fôlego perdido. Dei uma volta ao redor da pilha de madeira, enquanto ouvia estranhos barulhos que vinham de dentro; sons de metal se chocando. Era algo novo para mim, o que só fez aumentar ainda mais minha curiosidade. Não tive dúvidas, precisava saber quem era aquele estranho homem que surgiu assim repentinamente nas terras de minha mãe.

Parei em frente à porta, fechei minha mão direita um tanto trêmula e quando fui batê-la, me veio a idéia que qualquer idiota já teria tido. Este homem é o assassino que minha mãe falou a respeito. De fato só poderia ser ele. Olhei para trás, vi toda minha colina, o ponto no alto que era minha casa, e outro minúsculo ponto que se movia de um lado para outro; provavelmente minha mãe. Pensei em fazer todo o caminho de volta correndo ainda mais rápido do que desci. Mas não o fiz, por algum motivo que não conheço, mas sei que foi extremante fútil. Não acho que apenas a curiosidade tenha sido responsável pela sucessão de tragédias que ocorreram, e prendendo minha respiração levei minha mão fechada até a porta e bati três vezes. Aguardei. Aguardei mais um pouco e nada,porém o barulho lá dentro continuava incessantemente. Mais uma vez minha falta de dúvidas me fez cometer outro erro; bati na porta com mais força, agora com a palma de minha mão esquerda. O som que vinha de dentro da casa cessou. Tive certeza que me ouvira,mas por algum tempo ninguém apareceu. Já estava irritado e ergui minha perna para trás a fim de dar um chute contra a porta de madeira já muito velha, pintada com uma estranha cor vermelha, mas então um impacto; uma bala passa pela porta mandando pedaços de madeira para todos os lados, abrindo um profundo corte do lado esquerdo de meu rosto e se perdendo em algum lugar da colina. Fui ao chão, não sabia o que pensar no momento. A única imagem que veio em minha em minha mente no momento era dos animais que sempre partiam. Nunca pensei muito neles, mas enquanto estava caído, essa foi a única imagem que veio em meus pensamentos. Levei minha mão até o ferimento; meu rosto estava lavado em sangue. Levantei ainda desnorteado e comecei a correr em direção a minha casa. Com a mão no rosto e sangue nos meus olhos não conseguia ver muita coisa e apenas corri em uma linha reta traçada apenas pelo conhecimento que tinha de todo aquele solo. Enquanto corria ouvi outro estrondo, tentei olhar para trás, mas tudo que vi foi a porta da casa indo ao chão. Quando tornei a olhar para frente,de relance meus olhos foram até o céu, e lá em cima vi mais de uma dezena de urubus voando em círculo, do mesmo jeito que fazia correndo pelo pasto da colina, sempre correndo.

Ofegante, não poderia parar de correr, mesmo assim não resisti e diminuí o teor do passo, e mais uma vez tentei olhar para trás, mas antes disso outro tiro, desta vez em meu joelho direito, dilacerando minha rótula, fazendo-me praticamente parar e conforme caminhava ia caindo lentamente até atingir a terra molhada.

Deitado, com o rosto junto ao chão, o sangue no meu joelho já começava formar uma trilha colina abaixo e o do meu rosto escorria até minha boca tingindo meus dentes um tanto deformados. E assim aguardei o homem que caminhava com a mesma calma que chegou até a casa agora em minha direção.

Chegara. Parou ao meu lado. Empunhava uma espingarda de cano duplo que tinha a metade do meu tamanho. Usava um par de botas de couro visivelmente sujas de lama. Segurou-me o ombro e com um único movimento me deixou de face para o céu. Ainda não podia enxergar direito, pelo sangue em meus olhos e agora também pelos raios do Sol que penetravam minha vista. Só conseguia ver com mais clareza os urubus que agora voavam bem mais baixo. Estável ele permaneceu por algum tempo em minha frente. Nem um movimento sequer. Estava com tanto medo que comecei a implorar por entidades que jamais acreditei, chamei por pessoas que jamais dirigi a palavra durante toda minha vida, queria ter a coragem que me foi negada na forma de duas pernas brancas que tremiam mais que o terremoto que nunca presenciei, queria já estar morto e no inferno planejar minha vingança contra esse ser, contra esse irmão que me agora me olha, mas que eu, não consigo ver sua maldita cara.

Ele também olha para o céu e vendo o que também vejo, mas sem o vermelho, solta um riso demonstrando certa satisfação com todo o ocorrido e finalmente ouço o som de sua voz:

- Quem é você?

- Eu sou o filho da minha mãe, vivo aqui desde que nasci. Lá em cima, no alto da colina. – Respondi.

Mais uma vez ele ri,mas como se lembrasse de algo que se passou,cessou a risada e com um tom irritantemente calmo me disse:

- Parece que não fui o único condenado por aqui!

Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas minhas dúvidas tomaram o primeiro plano de tudo:

- Você é o assassino que minha mãe me falou um dia? Você vivia aqui antes e foi preso por matar alguém importante na região?

- Não sou um assassino – me respondeu - E a importância é relativa ao interesse que é sempre muito mais importante que qualquer pessoa que mereça uma bala na cabeça. Você não acha?

Não fazia a mínima idéia do que ele estava falando, só pensava na minha morte, no meu julgamento, se é que vou ter um mesmo. Gostaria que alguém me salvasse, mas não, ninguém ousaria:

- Mas se você não é um assassino, por que então vai me matar?

Ele olha para seu lado esquerdo, olha para trás, leva a mão direita ao bolso de sua jaqueta e tira duas balas. Começa a recarregar sua arma. Mais uma vez começa a rir, ri de prazer. Contorce seus ombros, geme; como se estivesse prestes a ter um orgasmo. Um urubu pousa há alguns metros de mim e observa tudo, imóvel. Termina de recarregar sua espingarda e com uma violentíssima pancada leva o cano da mesma até minha boca me quebrando alguns dentes, fazendo-me beber de meu próprio sangue. O gosto não era mais o mesmo das vezes que furava meus dedos nas rosas que minha mãe cultivava em seu jardim ao lado de casa.

- Irreversível. Somos animais esperando para sermos abatidos e servidos em uma grande mesa branca para Deuses famintos de desejos promíscuos e sede de pecados confessos, que vagam pelo ar graças ao desespero de nossas benções – Disse isso já pisando em meu joelho baleado. Continuava rindo, agora em tom mais alto. Gargalhava. Engasgou-se com o próprio riso, tossiu, cuspiu sangue no pasto e me olhou. Eu gritava. A dor era insuportável, não suportaria mais um minuto daquilo e sabendo que eu apagaria a qualquer hora me disse mais uma última coisa:

- Com certeza você já ouviu falar por aí que a vida é bela. Mas te digo uma coisa garoto: A beleza foi fabricada no mesmo lugar de onde saíram essas balas, no mesmo lugar de onde tirei minha motivação para fazer o que estou fazendo agora, no mesmo lugar que alimentou a curiosidade que fez você ter a certeza absoluta que seu sangue é vermelho, no mesmo cão que vi você matando quando ainda era uma doce criancinha inocente, no mesmo abismo que todos nós estamos caminhando em direção sem saber que embaixo há uma festa com um milhão de demônios nos esperando, uma festa em nossa homenagem, uma homenagem a toda beleza que criamos e fazemos acontecer em nossas vidas, dia após dia.

Antes mesmo de respirar depois de ouvir tudo que ele dizia; meu rosto já estava dividido em dois. Um olho estava totalmente à esquerda e outro totalmente à direita, e por um milésimo de segundo com meu olho esquerdo pude ver minha mãe descendo a colina correndo, chorando, indo ao chão e se levantando me fazendo questionar toda sua importância em minha vida, apenas questionar. Mais um milésimo de segundo e com meu olho direito, pela última vez presenciei toda beleza do lugar que vivi por todo esse tempo, com uma mancha vermelha que se estendia pelo horizonte, com urubus que já caminhavam em minha direção, com árvores que tinham rostos maléficos em seus troncos; falavam mal, a imagem da santa que minha mãe deixara no marco zero da colina que agora me olhava, sorria e me piscava o olho esquerdo, e o escuro... Escuro absoluto.

E aqui estou, ainda neste escuro onde não vejo início nem fim, saída nem entrada, futuro nem passado. Tudo que vejo é aquele homem logo ali, usando uma sotaina vermelha. Assim como o outro homem este também não tem rosto, mas a diferença é que este estou vendo. Não possui olhos, nariz, boca, ouvidos, nada. Apenas uma face lisa. Mesmo assim, mesmo não tendo olhos sei que ele me vê, mesmo não tendo ouvidos, tudo que o digo, ele ouve, mesmo não tendo nariz, sente o cheiro do meu medo exalado em cada um de meus poros, mesmo não tendo boca, ele me diz algo que não compreendo. E com essa enorme faca banhada em sangue na mão, sei que não vai demorar muito até começar a me perseguir, e agora que minhas pernas simplesmente sumiram não posso correr e mesmo se pudesse não haveria um lugar para me esconder ou simplesmente que valesse a pena chegar.

Jimmy Conway
Enviado por Jimmy Conway em 23/06/2009
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