Aos Budas de Pé
"... Desafogou o primeiro entusiasmo em uma construção la - ..."
Aquela era a primeira linha da página que a garota estava lendo,ela deixou o livro no acento ao lado com a capa para baixo, ele não conseguia ver qual o título do livro, só lembrou-se do número da página; 27. Ficou parado de pé na frente dela, segurando firme o balaústre, esperando que ela voltasse a leitura, lhe mostrasse o livro, mas antes que ele pudesse perguntar, ou melhor, antes mesmo que uma pontinha de coragem surgisse para que ele perguntasse qual era o livro, ela se levantou pediu licença e saiu pela porta do metrô, ele continuou de pé de frente para o acento desocupado, a câmera pendurada no pescoço, o cadarço do tênis desamarrado e numa das lentes do óculos uma digital que no primeiro momento não incomodou. Deixou o corpo cair no acento e procurou com olhos de ave de rapina a garota do lado de fora, quando a viu, ela caminhava apressada com o livro preso ao peito, voltou os olhos para a listra azul acima da porta, perguntou-se para onde ela estava indo. Apontou a câmera e fotografou a listra.
Nada importava em momentos como aquele, quieto no metrô, esperando que alguém chegasse até ele e o reconhecesse, mas aquilo não costumava acontecer com muita frequencia, sempre quando alguém se aproximava era para perguntar as horas, ou pedir alguma informação que ele nunca sabia dar, e quando dava era errada, só para parecer prestativo.Não era de todo ruim, as pessoas sempre perguntavam para uma segunda ou terceira e acabava por sempre se achar. Naquele momento dezenas de pessoas entraram no metrô apressadas a procura de um lugar para ocupar, foi quando lhe veio o mesmo pensamento de dias atrás, fotografá-las, todas, todas mesmo, mas nenhuma delas vestida. Sempre pensou em fotografar as pessoas nuas, em lugares públicos,no metrô principalmente, em um nu coletivo interessante, onde havia sempre a variedade de corpos e formas. Imaginou-se entre nus tão naturais e despreocupado, que não deixou de sorrir, David Leddick lhe entendera.
Sabia que não era por fetiche, ou qualquer impulso libidinoso visivelmente manifestado em algum volume na calça, o que queria era a mesma reação, ou saber em termos sociológicos; qual era a reação dos falocratas? Não havia muito tempo que deixara de lado algumas maneiras de fotografar, a mais importante, ou a que mais lhe agradou fora a lomografia, a coloração das fotografias, a nostalgia que lhe causava, era como relembrar uma infância inventada.Foi assim com colegas fotógrafos também, passou a deixá-los de lado, todos sempre com as mesmas ideias. Certa vez até conhecera alguns cineastas amadores, gente estranha essa, com termos hollywoodianos na língua - "Tragam as carnes" - Berravam num hibrismo colossal ao filmarem uma cena qualquer em uma avenida movimentada, convidavam qualquer garota a lá Jane Russell para aparecer com seus dotes.
"Give me some love" Disse a si mesmo ao abrir a porta do apartamento. Sentia-se estranhamente reduzido não havia progredido em exatamente nada naqueles últimos dois meses.Acendeu a luz, jogou as chaves na mesa, foi ao encontro da geladeira. O apartamento era do avô de uma amiga, ficava perto do metrô Jabaquara, era antigo e parecia isolado - Os vizinhos eram poucos a maioria japoneses, curiosamente na porta havia mais de sete ou oito fechaduras, o quarto maior tinha um assoalho fofo, graças a um carpete que não foi retirado na reforma, era estranho caminhar com o chão almofadado. Nunca havia estado em São Paulo antes, nos primeiros dias estranhou, a movimentação e soube de imediato que a cidade tinha muita coisa acontecendo muita coisa a lhe apresentar, conheceu a Av.Paulista, de dentro de um ônibus, e dali mesmo fotografou.
Tomou um banho rápido e foi pensar folheando as páginas de uma pasta que tinha organizado cópias das fotografias de Robert Mapplethorpe. Dos fotógrafos que mais admirava, Mapplethorne e Irina Ionesco eram os maiores, ao certo, tinha uma admiração maior por Irina Ionesco.Depois de jantar, (uma macarronada sem molho de tomate) telefonou para a amiga que havia lhe cedido o apartamento,"ela não está" anunciou a voz feminina na outra extremidade da linha, agradeceu e desligou, estava com ideias em mente, queria fotografar, pegou um guia de ruas, procurou a rua Augusta, fechou o guia, calçou os tênis, pegou a câmera e saiu trancando a porta.
Ele desceu na estação Paraíso, e embarcou em direção a Consolação, não demorou muito para ele subir a escada rolante e surgir perto do hidrante vermelho que havia na esquina da rua Augusta.Sentiu-se como num zoológico, mas um onde os animais eram pessoas, pessoas de "espécies" diferentes, de estilos diferentes.Desceu a rua Augusta, um tanto preocupado com o que poderia encontrar, viu o prédio da Kiss FM, um do lado esquerdo, algumas garotas passaram apressadas, usavam jaquetas de couro e cabeça raspada, os bares estavam apinhados de gente, algumas mesas distribuíam-se nas calçadas, parou para observar "colagens" nas paredes e numa pilastra, apontou a câmera e fotografou.Gostou daquela arte, viu uma colagem de Rimbaud, com algumas frases em francês, nem arriscou tentar ler.
Uma grande quantidade de gente se reunia em frente a um bar, ao lado de um hotel, alguns com garrafas, arriscavam-se em correr pela rua, uma viatura da polícia abordava três garotos, um policial mandou que pusessem as mãos na parede onde alguns grafites espetaculares, ele quis fotografar, o fez discretamente.
Agora haviam entradas com letreiros coloridos, fosforescentes, alguns sujeitos convidavam os transeuntes a entrar. - "Ei, garoto quer comer alguma bucetinha hoje?" Disse um sujeito de terno erguendo o braço para chamar a atenção. Ele continuou caminhando sem dar a mínima. "Se quiser..." Berrou "Pode até tirar umas fotos, com essa sua câmera ai". Ele parou. - "Quanto?" - " Quantas você quiser" - "Não, Não, quanto custa?" - "Depende da mulher" - "Só para tirar as fotos" - "Aqui entre nós, só 45 pilas" - "45?" - "É... É o preço que vai achar". - "Dou 30".
Para chegar até a porta era necessário subir uma escada com paredes espelhadas, o lugar fedia a cigarro e cerveja, na porta um segurança perguntou se ele era maior de idade, mas o sujeito de terno interveio e disse que era um convidado, mostrou os trinta reais.O garoto entrou por uma porta também espelhada, a "casa" tinha luzes vermelhas, e uns sofás, algumas garotas dançavam num palquinho montado perto da janela, no bar alguns rapazes tomavam cerveja e sorriam. - "Qual vai querer?" - "Quê?" - "Qual delas você quer tirar 'foto'" -"Da mais... Mais bonita". - "Mas são todas gostosas olhe, vai querer loira ou morena?" - "Loira" - "Aquela ali..." Disse apontando para uma garota loira, que descia a escada em caracol, usava um vestido curto e salto alto, o decote a mostra, ele achou já tê-la visto em algum lugar. - "Carla" Chamou o sujeito de terno.
Ele então reconheceu, era a mesma garota do metrô, a garota que estava lendo sentada a sua frente, não imaginou que ela pudesse trabalhar num lugar daqueles. - "O garotão aqui quer..." O sujeito se aproximou para falar perto do ouvido dela, ela fez que sim com a cabeça e olhou para ele, sorriu e pegou o garoto pelo pulso.O quarto era pequeno, não era um bom lugar para se fotografar, mas a luz era vermelha e ela estava nua, ficaria nua por uma hora. Ela perguntou se ele queria poses, ou se preferia fotografá-la na cama mesmo, antes ela levantou, ele ficou olhando, ela foi até o banheiro, ou o que ele deduziu ser um banheiro, numa portinha sem maçaneta.
Ele pensou em comentar que naquela mesma tarde no metrô tinha a visto, mas ficou quieto, ela voltou havia se maquilado, subiu na cama perguntou se ele queria que ela fizesse poses "tipo playboy", ele disse que preferia que ela se sentisse bem em qualquer pose, ela deitou-se na cama e ergueu uma perna. Ele então começou a fotografá-la, não pensou em como ficariam as fotos, só queria mesmo fotografar alguém sem roupa.E quem melhor do que uma garota de programa? Foram quase cem ou mais fotos, ele imitou algumas poses de Eva Ionesco, pediu que ela usasse o abajur e os "brinquedos" tirados da gaveta de um criado-mudo. Ele não prestou atenção no relógio, ela pediu que parasse alguns instantes para acender um cigarro. - "Sabe!" Exclamou ela sentando-se na cama abrindo as pernas, - "Acho que te vi hoje no metrô". Ele sorriu, mostrando as fotos para ela. - "Sim, eu também te reconheci". - "Qual o seu nome?". - "Marcelo" - "Carla" Ela estendeu a mão para que ele a beijasse. - "Prazer". - "Você costuma tirar fotos de garotas peladas?". - "Essa é a primeira vez, você... Você tem um pra mim?". - "Ah, sim, pegue está lá na salinha, na pia". Ele foi até a tal da salinha, havia uma prateleira cheia de cosméticos, uma pia pequena e uma privada, na pia estava o maço de cigarros e um livro de capa dobrada, o livro estava encapado, não tinha como ver o título, parecia um livro bem velho, o mesmo livro do metrô pensou. Ele pegou o livro tentou lembrar o número da página, - "Tu gosta de ler Carla?". - "Eu?, Sim, leio bastante..." Respondeu do quarto. - "Achou meu livro?" - "Uhum, quando te vi no metrô, em que página você estava?". - "Não lembro, perto da vinte, ou depois, não lembro, mas acho que não fui muito longe, olhe ai eu marquei a página onde parei". Ela continuou falando, mas ele não estava ouvindo dizia alguma coisa sobre coincidência. Ele abriu o livro, o título estava na segunda página, era um livro de crônicas, a crônica que ela estava lendo, - Aos Budas de Pé, ele abriu na página 26 e leu;
"Desafogou o primeiro entusiasmo em uma construção lamuriante de desejos... preguiçosamente abriu as pernas, e convida-o a se aproximar, em seguida levanta os braços aos céus esperando resposta, mas resposta não vem, ainda mais de um teto onde alguém havia pintado três budas de pé, pensou no poderiam significar. Mas logo esqueceu, tendo budas de pé ou não... Nada se consegue depois de deixar cair o corpo nos lençois de outrem. Ensinando as pequenas coisas. Pequenas coisas que uma criança como aquele garoto não deveria saber, saber ainda. Era verdade que o garoto já não possuia a inocência nos olhos, e que tinha as mãos ásperas tocando o corpo de uma mulher mais velha, e alegando que... O que acontecia nas noites dentro daquele quarto, não deixava de ser tentativas para conseguir... A resposta aos braços que levanta aos céus, aos budas de pé".