O MUNDO É PARA AS MENINAS
O mundo é para as meninas
“...Bebei o leite duma vez! Todos os dias na mesma; a ficar atrasadas já desde a manhã...!”.
Eram as mesmas palavras repetidas, sem vontade de as mudar realmente, com a consciência plena de que nem ela nem as meninas iam ser melhores pessoas por apressar-se mais, e de que a vida apenas podia piorar se se tomava mais a sério.
As meninas enjugaram as chávenas, mal limparam a cara e olharam a mãe. Na sua olhada demorava uma tranquila obstinação.
Porque estas crianças olham assim? Como sabem elas que é assim como se tem que olhar?
Eram as perguntas fulcrais, eternamente repetidas depois de cada confronto.
Saíram depressa; guiou desesperada e, como quase sempre, chegaram atrasadas. Sentiu nas suas costas as ferinas picadas das mães sensatas, que estão sempre prontas e levam as suas crianças bem penteadas e pontuais, que nunca sentem que são elas mais meninas do que as filhas.
Respirou fundo e voltou para o carro, ainda mais apressada e mais cansada do que estaria ao final da tarde.
Começara, por fim, a estralar a trovoada. A chuva pingava fortíssima e, enquanto procurava as chaves, sentiu-se afagada por uma água morninha que a empapava totalmente. Riu. Não foi um sorriso, foi um riso brilhante e elétrico que lhe lembrou a adolescência e as camisolas molhadas coladas ao corpo.
Por fim conseguiu abrir o carro e, no mesmo momento em que entrava, soou o telemóvel.
Não era número conhecido. E aquelas não eram horas normais de soar o telemóvel. Duvidou em atender. Já perdera tempo em rir e em sentir a luz a passar pelo seu corpo.
-Estou -disse automaticamente-.
-Ó Laura...Tens a mesma voz! Que alegria ouvir-te! Deu-me o número a tua mãe. Tinha muita vontade de te escutar! Telefonei-te mesmo ao acordar!
Laura não reagia. A outra tinha um vulcão na fala e ela sentia-se vítima da erupção dele.
-Podemos combinar agora? -acrescentou aquela voz-. Tenho tanto para contar-te e faz tanto que não falo contigo...Lembras-te? Desde aquela vez que fomos ver o João ao Porto.
Agora sabia, era a Alice, aquela companheira sempre menina, que a metera em tantos sarilhos que já nem conseguia lembrar; e com quem sentira uma cumplicidade que, depois, nenhum homem nem mulher, nem filhas, nem mãe foram capazes de apagar.
Mas, como era possível? Fazia muito tempo, era verdade. E contudo...como não tinha reconhecido a sua voz?
-Alice. És tu? Onde estás?
-Não perguntes e escuta: não vás ao trabalho hoje, faz o favor!
-E como não hei-de ir? É quarta...
-Ouve, diz que estás doente. Vá lá. Que vai passar?
Era a Alice de sempre, já estava a ensarilhá-la de novo, mas como o desejava...Nem pensou, era quarta, caia uma chuva desbocada, voltara a Alice, sentira um raio a atravessá-la...Não havia nem que pensar!
-Onde te vou procurar?- respondeu.
Foram ao mercado. Compraram cuecas com desenhos de meninas. Eram as únicas na feira; com aquela chuva...Passearam pelo parque do seu bairro e foram também as únicas. Lembraram. Tomaram gelado, e café, e outra vez gelado. Baixaram a correr até o rio. E não mudaram nunca de roupa. Bailavam-lhes os pés dentro dos sapatos e em todo o tempo não parou de chover.
Quando cansaram de lembrar, de rir, de brincar, de correr...olharam-se no fundo dos olhos e souberam o que tinham que fazer.
Beijaram-se demoradamente, sem prudência e sem reparos. Já eram mulheres para isso. Beijaram-se mais, soltavam-se e voltavam a enredar-se, mimavam-se com descaro.
Sabiam-se testemunhas de o tempo não ser uma linha reta; passa e não passa, vai e volta. E elas eram felizes de sabê-lo.
A despedida foi doce e tranquila. Agora voltavam ao que era de antes: o tempo das meninas não passara e a vida não acabaria com elas.
As crianças brincavam no passeio diante da escola. A mãe correu para elas e abraçou-as.
-Hoje não vamos a inglês. Hoje vamos à praia.
-Mãe -disseram surpreendidas- é tarde e está a chover!
-E que mais tem? O mundo é para as meninas.
Irene Veiga Durán. Ourense (Galiza).