Dia da Transição

Dia da Transição

Não bastasse carregar uma agonia indescritível desde a virada do ano, sonhei há pouco com pessoas que desconheço embora me parecessem assaz familiares.

Venta bastante no viaduto Maria Paula desde 8 da manhã.

São oito e trinta.

Claudia me liga para saber que horas eu chego e acontece a primeira sensação estranha do dia – o fato de estar carregando o celular. Repito mecanicamente a cantilena da véspera: chegarei assim que descer do ônibus.

Do centro até o início da João Dias é uma cavalgada e tanto - estamos falando em cerca de 10 quilômetros de concreto.

Quanto ao celular, pode parecer excêntrico, mas com os assaltos aos passageiros do transporte público, nesses deslocamentos prefiro deixá-lo em casa, e assim dar um destino melhor para o aparelho. Quando tocou, a sensação de estar participando de um sonho se fez presente. Sem contar a pausa despropositada de Claudia, que por fim disse: você não vai acreditar, durante a madrugada ouvi o Neco latindo sem parar. Fiquei assustada, era o mesmo latido. Fui conferir e ele estava no quintal, abanando o...

A ligação foi interrompida.

Celso, meu filho mais velho, deve ter visto alguma coisa na minha fisionomia.

- O que ela disse?

- Sua madrasta está variando. Disse que o Neco estava latindo no quintal.

- Como assim? O Neco morreu...

Nada de ônibus. Duas picapes do CET passam à toda com sirene ligada. Uma terceira vem com a caçamba lotada de pessoas. Dois descem no nosso ponto. Ficamos sabendo que uma pane elétrica na Barra Funda está criando uma séria confusão.

Os dois que desceram da caminhonete tem cabelos grisalhos muito curtos, aparentam cerca de 50 anos ou mais, carregam valises e trajam jaquetas com iniciais bordadas. Parece o logotipo de uma construtora ou algo no gênero.

Outras sirenes e sirenes ao longe. Motos. Carros esparsos.

Vamos andando com vagar, volta e meia indo para o meio da pista

espiar a condução que não aparece. Os dois nos acompanham, como se isso fosse o combinado.

Celso está ouvindo mp3. Na esquina da Major Diogo os apetrechos mobiliários do vendedor de frutas estão à mostra. Ele não. Um dos homens puxa um dos caixotes de madeira e se aboleta, tirando um netbook da valise.

- Pai, pai?

- Que é?

- Me empresta o seu celu.

Começo a vasculhar nos bolsos e não encontro.

Ele olha para mim e logo para o chão à nossa volta.

- Pode ter caído...- fala com voz abafada, olhando a calçada percorrida.

Peguei um dos caixotes e me sentei. O sujeito grisalho tecla sem parar. Seu parceiro parece despreocupado e assovia “se você não me queria, não devia me procurar”. Ouvia isso quando era criança, com meu pai.

Celso desistiu de procurar e já não olha com desconfiança para os dois sujeitos. Meu coração bate forte, tento esvaziar a mente.

- Estou fazendo lotação daqui até o Centro Empresarial. Quem quiser fica no caminho e paga uma parte.

Toninho do táxi. Conheço-o daqui mesmo, comprando frutas.

- Mas só cabem três... – avisa. Ao lado dele uma senhora gorda chora baixinho.

Celso topa, pois é caminho para seu escritório. Os homens de jaqueta se entreolham. O do netbook fala para o parceiro: vá você, mais tarde nos encontramos. Fui o último a entrar. Impossível não notar a mulher no banco da frente, convulsionando. Todo o colo dela tem manchas de sangue. Toninho percebe meu olhar pelo retrovisor, põe o carro em movimento e esclarece:

- Sara é minha vizinha. Aconteceu uma coisa com ela de madrugada e...

- Eu menstruei – exclama ela chorosa – tenho 62 anos...Começou de noite...não parava mais...

- Uma noitada – complementa Toninho pousando a mão no ombro dela – vamos deixá-la no pronto socorro ali embaixo. Já parou.

A CBN, ou o que se supunha ser a CBN, dava a notícia de que em Santos, um container da Nike repleto de artigos esportivos, que deveria estar repleto de artigos esportivos, ao ser aberto revelou estar abarrotado de pães. Ainda por cima pães frescos. Instauraram inquérito policial na madrugada, mas as pessoas das cercanias que souberam do fato, invadiram as docas e um pequeno pandemônio tomou conta do local. Só se fala nisso.

Os sons de dentro do carro cabem na máxima: “Dentro, assim como fora. Embaixo, assim como em cima”.

O sujeito de jaqueta e valise fala inglês perfeito com alguém que está em Sorocaba, pelo que pude entender. Celso ouve música com fone de ouvido. Seus olhos estão inquietos mas o silêncio sempre foi o ponto mais forte de sua personalidade. A mulher pende a cabeça para baixo segurando a testa com a mão direita. Toninho dirige com serenidade no peculiar tráfego do primeiro dia útil do ano, e comenta sobre o clima, onde já se viu 15 graus e esse vento gelado em pleno janeiro.

Percebo que a conversa dele amaina os ânimos de Sara. Para contribuir coloco mais forro no assunto, salientando que as TVs fizeram um documentário explicando essa virada de temperatura, semana passada.

Dos duzentos mil motoboys de São Paulo, hoje tem-se a impressão de que o contingente triplicou, pelo menos em certos trechos.

Nosso trajeto, em virtude da lotação do Toninho, seria quase uma linha única, razoavelmente reta. Depois que deixamos Sara no PS, começamos a nos desviar do traçado original pois focos de trânsito se aglutinavam aqui e ali com uma rapidez espantosa.

- Veja, pai. São eles de novo – exclama Celso, que tem redigido ensaios sobre o tema. Se intitulam “Guardiões da Presença”, e ficam

nas praças formando círculos de oração e benção. Desde o final de 2010 eles adotaram essa chancela e deixaram suas congregações para peregrinar pelas ruas. A maior parte são padres católicos e rabinos judeus, mas às vezes vê-se também hare Krishnas e muçulmanos.

- “Nesta sociedade sem amor – prega um rabino – desencarnar é a possibilidade que temos de nos libertar da ilusão da forma e retornar ao nosso lar espiritual. Encarnar é como vestir um escafandro e tentar caminhar debaixo da água com ele.”

Um caminhoneiro abandonou seu veículo quase que atravessado, impedindo o fluxo, e foi se juntar aos sacerdotes. O homem gritava que passara a noite na estrada e que vira arcanjos gigantes, com mais de três metros de altura, no meio da pista.

- Pai, acho que vou com você para a casa da Claudia.

- Que pôrra é essa?! – fala Toninho entre dentes, saindo do carro e se dirigindo ao caminhoneiro. O homem estava tresloucado. Falava em línguas de fogo faiscando na estrada e bandos de animais silvestres atravessando a pista. Alega ter certeza de que passou por cima deles sem querer, mas quando foi ver não havia nada. Com muito custo Toninho conseguiu a chave do caminhão para melhor manobrá-lo e permitir nossa passagem.

Nesse ínterim, dentro do táxi, o homem da valise encerra a ligação, sorri para mim e para Celso dizendo:

- Meu nome é Dorian – e estendeu a mão para nos cumprimentar.

- Você é brasileiro?

- De Itapeva – respondeu – mas trabalho em Miami desde 93. Uma hora lá, uma hora cá, sabem como é...

Combinamos acertar um preço fechado com Toninho, pois todos vamos para a mesma região.

Toninho tem olhos azuis e rugas. Parecia cansado quando retomou o volante.

- Esses caminhoneiros...se entopem de rebite e depois vem azucrinar. Vocês não sabem a noite que eu tive. Além de vizinha, Sara é comadre da patroa, tirou ela da cama às 3 da manhã. Já viu né? O marido dela falou que ela tava louca, mas minha mulher examinou. Do jeito que dava, né? Não havia corte nem nada, e a Sara descrevia que a sensação era a mesma. Que noite.

Contornamos a praça e nos enfiamos num monte de alamedas, esquerda, direita, esquerda, o objetivo era retornar à avenida principal. Quando chegamos numa esquina com guarita, quase atropelamos uma criança.

- Mas... que...- Toninho arqueou as sobrancelhas.

A rua estava fechada por um cordão infantil de meninas e meninos. De mãos dadas, desferiam quase como um coral: vão embora, vão embora.

- Mas...dá uma olha nisso...

O pavimento estava todo decorado com pétalas de flores, arranjadas de modo a formar desenhos no chão, como acontece em Corpus Christi.

Dorian saltou com uma pequena câmera digital e passou a fotografar. As crianças de mãos dadas se moviam como bambus ao vento, entoando: vão embora, vão embora.

Desviamos dessa alameda e tornamos à avenida.

- Sonhei com esses desenhos, há pouco tempo – suspirou Dorian.

Celso franziu o cenho ao olhar para mim.

- O que você faz, Dorian?

- Trabalho para o concorrente.

- ?

- O caso do container, que está dando no rádio – explica ele - Voltei de Santos ontem. Vou te dizer uma coisa que pouca gente sabe, não foi apenas um, mas 5, contando com os nossos, todos repletos de pães. Isso está acontecendo desde o ano novo. No princípio pareceu coisa do crime organizado, mas é...impossível. Os pães permanecem frescos, como que recém saídos do forno...Vocês não vão comentar nada, ok?

Celso estava do banco da frente e anuiu em silêncio. Toninho fingiu que não ouviu.

- Alô...oi Claudia...o celular do meu pai? Eu...não sei, estamos indo para sua casa. Como assim, meio dia?

A ligação caiu.

Foi involuntário e coletivo. Olhamos para o relógio no console do carro. Meio dia.

Toninho buzina, alheio a questão do horário.

Dorian, Celso e eu, cada qual checa outras fontes de consulta e todas asseveram: meio dia.

Um carro do corpo de bombeiros estaciona ao nosso lado, no farol.

O sargento encarregado desce e se aproxima do nosso motorista. Explica que teremos de fazer um desvio, pois na altura do cruzamento com a avenida Águas Espraidas está tudo alagado, devido ao temporal.

Minha paciência nesse ponto atingiu o zênite, ainda que tal informação seja um tanto disparatada, já que a maleabilidade da paciência tem parâmetros ocultos.

- Que história é essa de temporal? Não há uma nuvem no céu! A Espraiada está logo ali adiante – bradei, exibindo minha carteira de escrivão de policia – você é de qual batalhão?

- 2º Grupamento, Campos Eliseos. Estamos indo para o batalhão sediado na rua da Paz – respondeu o sargento sem se intimidar – se quiser ir em frente o problema é seu. Acabamos de vir de lá. Aconteceram coisas estranhas nessa madrugada.

- Tipo o que? – indagou Dorian.

- Tipo incontáveis focos de incêndio no Capão Redondo. Dezenas, centenas de casas. Só que quando chegávamos no local não havia fogo nenhum, embora os ocupantes da casa afirmassem o contrário

e se comportassem como vítimas de um incêndio. Mas os velhos e...

- ...as crianças – completou Dorian – tinham visto bolas de fogo violeta em volta das casas, certo?

O sargento emudeceu, lívido.

Carros, buzinas e sirenes passavam por nós, mas eu os percebia dotados da mesma intensidade de um bando de borboletas.

- Ele trabalha com você? – indagou-me o sargento.

Fiz que sim sem abrir a boca, apertei a mão dele e com a cabeça indiquei para o motorista que nos movêssemos.

- O único jeito da gente evitar o tal alagamento é subir e descer pelo Brooklin Velho – comentou Toninho, que dava sinais de uma certa dificuldade em articular as palavras.

- Conheço um atalho – falei, em seguida me voltando para Dorian com agressividade – como você sabe dos incêndios?

- Pára, pai, pára! – berrou Celso – ele sabe do mesmo jeito que eu sei. Sonhou, não é isso?

Dorian sorria, tranqüilo, meneando afirmativamente.

- Exatamente como o sargento falou. Só não sabia que era no Capão Redondo.

Boa parte do Brooklin Velho teve seu casario erigido por estrangeiros, na segunda metade do século passado. Nos últimos tempos as residências amplas foram dando lugar a condomínios horizontais. Vamos subindo e descendo ruas em silêncio.

Numa praça toda ornada com Quaresmeiras tornamos a ver os “Guardiões da Presença” orando em voz alta com inúmeros motoqueiros ao redor.

“...e estamos aqui para expandir o Plano que os Mestres tem para cada homem. Sintonize a nossa consciência com a Vossa, aumenta a nossa visão agora para ver...”.

- Caramba, quanta motocicleta...- grunhiu Toninho – entro aqui ou vou reto?

- Vai reto – explico. Minha vista dói, mas os batimentos cardíacos arrefeceram.

Celso comenta que a cada 3 casas, ou quase isso, há um sinal esquisito de tinta no portão ou na porta.

- Vândalos...- rugiu Toninho, se desviando de um motoboy.

- Você não é escrivão de polícia coisa nenhuma – disse Dorian, sempre ostentando um sorriso nos lábios.

- Não mais...- confessei – que isso importa?

Dorian deu de ombros. Comentou displicente que realmente pouco importava, mas que costumava ler artigos na internet, e que lera um chamado “A única constante”, alguns anos atrás. E como ao lado do artigo havia uma foto...

- É você, certo? Quando li, pensei, sei de onde esse sujeito tirou a idéia central, e sei que vou precisar me lembrar dela um dia.

- Mas nunca imaginou que fosse conhecer o autor – exclamou Celso, logo em seguida se contorcendo para atender o telefone – oi Claudia...sei, olha, estamos perto...fala com ele.

Quando segurei o aparelho tive a mesma sensação da manhã. Parecia um sonho. Disse-lhe que estamos fazendo o possível para chegar, que houve complicações e...

- Toninho, pára o carro.

- Que lugar é esse? – indagou ele, parando.

Dorian se adiantou respondendo:

- A Sabesp do Alto da Boa Vista. Morei aqui do lado quando era criança. Veja quantas garças.

Não se ouvia nada exceto um curioso matraquear.

Lembrei-me da época que trazia as crianças para passear aqui. No entardecer ficava repleto de garças. Mas hoje parece brincadeira.

Devem ter umas mil garças.

Dorian começou a fotografar.

Celso juntou-se a mim.

Claudia estava bem ali na frente, segurando o cachorro na coleira.

- Pai, o sol está se pondo.

Claudia cumprimentou primeiro o Toninho, que não emitia um som.

Depois nos abraçamos.

- E agora? – indagou Celso.

- Não há o que temer. Chegamos até aqui por algum motivo. Pela lógica, a noite terá a mesma duração que este dia.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 19/06/2009
Reeditado em 27/03/2013
Código do texto: T1657404
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