Catarse

(Para Caio e Vanessa)

As malas, no canto. O crucial. O resto seria adquirido ao longo da vida, no Éden ou no Inferno. Ele tava ali, sentado na beiradinha da cama daquele quarto minúsculo do hotel daquela cidade pequena. Bem pequena. Sem restaurantes de comida internacional, ela riu. E, ao chegar no hotel, depois de um banho rápido, Caio tinha deixado seus cabelos negros soltos. Cachos soltos. Tiros. Gritos. As ruas cada vez mais agitadas. Mas ela havia marcado ali. Por que? O quarto sem luz. Um motel vagabundo. Lençóis desfiados. Somente as luzes dos carros, vindo da janela. Difícil enxergar alguma coisa. Não gostava deles caindo na cara, em cima dos óculos. Mas era necessário. Ela tinha, numa noite total e única, sussurado pra ele. Caio podia ouvir a voz rouca dela lhe pedindo tantas coisas naquela noite. Ele ainda podia ouvir ela pedindo seus cabelos soltos. Era só ele fechar os olhos. E, com eles fechados, o jovem jornalista tirava, do bolso da calça, um pequeno receptáculo fatal. De veludo. O toque. O toque naquela caixa lhe lembrou algo perfeito, algo atemporal. Não houve necessidade nenhuma de ver, ele pensou. Como em todas as noites únicas com ela. Em cinco meses de namoro. Com Vanessa.

Ele queria se casar com Vanessa. No trabalho, no minúsculo jornal da cidade pequena, ele abria os olhos e limpava os óculos. Fechava os olhos e pensava. Acordar ao lado dela. Olhar pra ela, confirmando em qualquer igreja e pra quem quisesse ouvir que ela era sua esposa. Ficar deitado com ela, na cama, nas tardes de sábado, quando ela estivesse com a barriguinha do primeiro filho, ele ficaria deitado atrás dela, com a mão sobre a pele pálida de Vanessa, no silêncio do seu primeiro filho. E a beijaria, toques lentos, beijos longos, para sempre.

Estudaram juntos na escola, ele se dedicou na aula de Português, tentou entender o formato de um soneto pra poder escrever pra ela, mas as amigas pegavam o papel de caderno dobrado e sempre abriam antes dela.

"Você chegou a pensar em mim... Como seu melhor amigo?"

Ela riu. Um sorriso pra vida toda.

Quando a família de Vanessa se mudou, eles perderam contato. E ele não conseguiu beijar aquela menina na festa, ela tinha pintado o cabelo de vermelho. E ele não conseguia ir pra cama com menina nenhuma sem comparar qual som, qual música ele conseguiria tirar daquele corpo. Mas não, ele sorria agora na beiradinha da cama, não era o corpo dela. Até que ela veio visitar as tias. E ele estava comendo no posto de gasolina.

Caio a reconheceu prontamente, mais alta, altíssima, pálida e... Com o cabelo pintado de vermelho. Ela tinha lhe falado no recreio, assim que tivesse idade, pintaria o cabelo de vermelho, arrumaria um coturno e desapareceria dali, guia de turismo, militar, aeromoça, qualquer coisa que a fizesse sair dali. Vanessa entendia aquela cidade pequena como uma filial do Inferno. Caio disse que desejaria estar com ela, no Éden ou no Inferno. Ela sorriu. E ele nunca conseguiu beijá-la nos tempos de escola. Mas quando suas malas foram postas no bagageiro do ônibus, ele conseguiu entregar um pedaço de papel, mas não era caderno, mas partitura, música com seu nome, sonhos com seu nome, ao invés de um autógrafo, um "vou te encontrar, nos meus sonhos e em qualquer outro lugar".

Na conversa do posto de gasolina, ela riu, ela tinha certeza de que ele não se lembraria dela, teria se casado, gente em cidade pequena se casa cedo, ele tinha certeza de que ela não se lembraria da partitura, eles estavam os dois errados.

"Você chegou a pensar em mim?"

Ele riu. A vida toda.

Naquela noite, a caixinha fatal de veludo em suas mãos e seus olhos fechados, sorrindo. Seus olhos sorriam porque ele não precisava ver mais nada, era Vanessa, para sempre

Quando ela entra correndo trancando a porta e os olhos negros apaixonados sorriram sem entender o que ela fez foi falar baixinho que havia um táxi pra tirá-lo dali pelos fundos era só ele sair dali depressa ela não podia explicar ele não iria sair ela disse que não havia tempo não havia tempo ela se meteu numa enrascada agora não dava tempo de explicar ele não iria sair correndo ela falou cada vez mais baixinho que ficaria um tempo sem vê-lo ele abriu a caixa e foi quando

Tudo parou.

Caio disse que sairia, apeans pediu que ela esperasse ele pôr o anel em sua noiva, Vanessa estancou. Como se fosse ferida cicatrizada, como a água de um rio violento que seca de súbito. Sua respiração, contida. E tudo o que Caio desejava na vida era ficar ali, beijar Vanessa, toques lentos, beijos longos, respirar a sua pele, enquanto movia seus lábios, dizendo seu nome, enquanto a beijava, eternamente.

Caio lhe pediu que lhe deixasse ir com ela, que ele iria protegê-la, que ele iria estar com ela, no Éden ou no Inferno.

Quando Caio, com seus cabelos negros soltos sobre os óculos, pegou o anel da caixa fatal, Vanessa o empurrou na parede, som de batida forte, dor, ele sentiu seus dois pulmões naquela pancada, ela o olhou com lábios que não disseram nada, toques lentos, beijos longos, respiração contida.

E suplicou que ele saísse pelos fundos o táxi o táxi e saiu correndo pelo corredor

E Vanessa não viu as malas do Caio, prontas.

Quando Caio saiu do quarto, não sabia.

Não sabia quem eram aqueles três homens, não sabia quem era aquele que apontava uma pistola no pescoço de Vanessa, como se velho conhecido fosse. E eles estavam armados demais e agressivos demais para serem velhos conhecidos.

E Caio não conseguia não conseguia não conseguia ficar alheio indiferente era sua Vanessa ameaçada era sua Vanessa finalmente pra sempre

Porque seu grito alertou o que segurava Vanessa perguntou se ele viria com eles Vanessa pediu que o deixassem em paz ah uma testemunha ele sorriu e o tiro no peito Caio sentiu seus dois pulmões novamente mas a dor era bem maior era inacreditavelmente maior ele jamais havia sentido dor maior do que aquela e Caio não percebeu que caía

Vanessa lutou com o que havia atirado, os outros apenas riam, Caio teve medo por ela, onde ela tinha aprendido a lutar assim? Quando Vanessa desarmou o seu atacante e mandou que os outros dois se afastassem, eles disseram que ela fazia parte da família, que ela era um deles, um deles riu e perguntou se tudo isso era por causa do cadáver, ele rapidamente atirou

na cabeça de

Caio

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(Caio e Vanessa não existem. A música "Eden", da banda Hooverphonic, sim.)

http://www.youtube.com/watch?v=veP2PcvMWKQ

K Vilela
Enviado por K Vilela em 18/06/2009
Reeditado em 17/10/2010
Código do texto: T1654675