Descanso roubado
A colher caiu no chão: “ Xiiiii... é mulher que vai chegar...” Lembro-me disso agora, sem querer. Era assim que minha mãe brincava com a gente, quando, crianças estabanadas que éramos, deixávamos cair, vez por outra, um talher. Se fosse colher, era mulher que iria chegar para visita; garfo, a visita seria de um homem; faca, era sinal de briga e, para quebrar essa “cisma”, tinha de jogar logo uma colherzinha daquelas de mexer café no chão para espantar o mau agouro.
Gosto da manhã preguiçosa de outono. Do desjejum. Da mesa bem posta. Às vezes, nem como muito. Sento-me à mesa para alimentar-me mais das impressões e dos aromas que propriamente da refeição. O ritual da mesa me descansa. Fico assim: nostálgico. As lembranças afloram em minha mente. Lembranças boas, que talvez eu nem tenha vivido. Por vezes, o que parece verdade não é. Tem algo em mim que me faz crer na verdade que pode ser pensada, inventada por mim. Quem vai me tirar essa alegria? Eu, às vezes, invento a minha verdade e com ela fico feliz. Gosto do ritual da mesa, especificamente a mesa do café da manhã. Se estou em casa, mesmo sozinho, sirvo-me à mesa, com direito a tudo que eu possa dispor e, sozinho, fico imaginando que por ali, existe ou existiu uma família feliz, como as de comercial de margarina.
Quando eu era criança, não gostava de comer e, como eu tinha, por força maior, de ficar à mesa, pressentia que os objetos ali postos eram amigos e conversavam entre si. A xícara conversava com o pires, a faca com o garfo, e assim formava-se uma espécie de conferência.
Eu passava assim muito tempo, espectador atento deles, escondido ali à mesa, colocando com minhas mãos, aqueles objetos em contato uns com os outros. Tentava aproximá-los conforme as suas afinidades. Atento ao que diziam eu guardava total silêncio. Eles é que falavam comigo. E como eram queixosos!
Quando ficavam longe, cada qual em seu canto, guardados no armário, sentiam saudades de seus “parentes”. Confidenciavam-me isso, como se pedissem minha ajuda. Eram todos amigos e familiares. Entristecia-me saber que, no armário, ficavam separados. Sentia-me culpado por, de certa forma, eu, consentir em vê-los ali, dentro daquele armário tão grande e de ferro frio. Em minha cabeça de criança medrosa, eu imaginava, aterrorizado, o escuro que se fazia dentro daquele armário! De tão volumosa escuridão, eu imaginava, abriam-se abismos e uma vez engolido por eles, seria impossível encontrarmo-nos novamente. Mas eu sentia medo de protestar, lutar por eles. Eu era incapaz de dar nome àquele aperto que me subia à garganta quando os ouvia, choramingosos, mortos de saudades uns dos outros. Eu então, à mesa, num silêncio de luto, punha-me a aproximá-los. Nessa atitude, quase autista, eu julgava consolá-los e, pensando assim, eu sanava um pouco da minha culpa. Eu queria que, pelo menos pelo tempo que passassem ali comigo, ficassem mais felizes.
Eles, pobrezinhos, achavam que podiam contar comigo para uma revolução permanente em suas vidas. Mas, eu percebia que me viam mais forte do que realmente eu era. O fato é que eu nada podia fazer por eles, éramos iguais. Eu era uma criança em mãos de pessoas adultas. Da mesma maneira que dispunham de mim como bem quisessem, também as louças e talheres entravam e saiam do armário ao gosto de seus donos.
Eu sabia de tudo sobre eles, sempre me contavam: os pratos pequenos de sobremesa eram filhos dos pratos rasos de almoço, os pires de café eram os netinhos dos pratos rasos de almoço e, conseqüentemente, filhos dos pratos de sobremesa. Como separá-los? Sofriam. E eu, testemunhava tudo. Por medo, não ousava falar nada. Nenhuma intervenção de minha parte. Sofríamos todos, calados, mudos e tolhidos de nossas vontades.
As louças, que iam para a mesa da minha infância, sabiamente apontavam-me, sem que eu percebesse, o prato principal que eu, ainda cedo, haveria de provar: a culpa. A culpa de existir, de me permitir ser quase invisível. E ser quase invisível é pior que ser totalmente invisível.
Eu me escondia das pessoas por medo e omissão. Saber daquilo que os outros não sabiam sobre as louças me fazia medo e ao mesmo tempo me causava uma enorme culpa vê-las sofrer. Sempre me incomodou tomar o lugar daquele que nada pode fazer.
Resolvi crescer e me esquecer das louças. Passei a alimentar-me bem, nem lembrar que elas tinham alguma espécie de alma. Nunca mais se lamentaram comigo. O meu descanso passou a ser outros tantos. Nem pensava mais naquelas longas palestras à mesa de refeições. Esqueci.
....
Se ainda hoje, adulto, dono de minhas próprias louças, eu me flagro ajeitando um prato pertinho do outro, uma xícara pertinho da outra, faca com faca, colher com colher; penso que faço isso, não por senso estético, não para que tudo fique “bonitinho” cada qual no seu lugar. Faço isso, ainda, para expiar alguma culpa.
A Junior 07/04/09